O Arte Photographica abre hoje o seu espaço à pena de Maria do Carmo Serén, historiadora, investigadora e teórica da imagem fotográfica como não há muitas em Portugal.
Maria do Carmo esteve desde a primeira hora ligada a quase tudo o que se escreveu no Centro Português de Fotografia. Foi coordenadora do Departamento de Comunicação e Informação da mesma casa, onde dirigiu também a revista Ersatz, entretanto extinta. Escreveu vários livros de história da fotografia, especialmente relacionados com o Porto, mas tem também obra publicada na área da fotografia contemporânea. E, claro, são dela todos os textos de apresentação das exposições que vemos no CPF.
Maria do Carmo Serén orientou o meu trabalho de licenciatura na Escola Superior de Jornalismo do Porto sobre a Exposição Internacional de Fotografia, organizada no antigo Palácio de Cristal do Porto, em 1886. Lembro-me bem do dia em que foi discutida essa monografia de fim de curso. E da sua imensa descontracção. Passei com boa nota. Fomos comer uma francesinha à Foz e depois corei de vergonha, porque me ofereci para pagar o almoço e tinha o dinheiro mesmo à continha.
Foi sempre inspirador reencontrá-la na prosa apaixonada que foi deixando no papel. Agora, é um prazer reencontrá-la aqui. Uma fotografia, um nome é a rubrica que decidiu oferecer-nos. Terá um regularidade quinzenal, mais coisa menos coisa, e estes textos não impedirão que nos faça outras visitas com comentários sobre exposições ou outras reflexões afins.
Bem-vinda!
/uma fotografia, um nome\
Porto:Mariano Piçarra
“Eu gosto destas cidades-mistério, que se desagregam sob os nossos olhos distraídos, espaços-desastre como este, ferido e tão fraccionado como a Fotografia nos ensinou a ver. As brechas e os rasgões, o corte e as sombras alheias são o desiquilíbrio e a fragilidade do papel ou do píxel, da imagem e do seu inconsolável demiurgo que nos oferece, antes de tudo uma ausência, repautando o pecado capital da análise psiquiátrica.
A composição assegura-nos o fotógrafo vagabundo, flanando pelo labirinto que a cidade ocidental nunca deixou de ser. E acreditando, acreditando ainda, que esse corpo urbano sempre em transformação, pode revelar as pulsões que sublima e não sublima, os seus segredos.
E, porque é a imagem da cidade, também mostra a erosão que a corrói, o desleixo que a mutila, a memória da falta e do absoluto – esse apontamento estético e perturbador de um marketing qualquer.
E, é evidente, a opacidade.
Porque o céu é uma esquadria geométrica, o horizonte, uma sucessão e volumes úteis, porque o ar serpenteia entre micro-climas urbanos; porque a câmara também espartilha e determina o enquadramento do que vemos. Não há leitura transparente, cada esquina é uma desconstrucção que recusa a síntese.
A cidade transporta consigo, como a imagem fotográfica, a perversidade de simular o mundo. Por isso a estranheza, a insegurança, o conviver do puro-impuro, do bem e do mal, o labirinto que recria, o mal de vivre. Um olhar light, muito contemporâneo, vê nela a infracção de todos os conceitos da novíssima Ecologia. Mariano Piçarra junta aí a sabedoria da Natureza como mestra, que contraria a Gnose moderna da impureza do Mundo. O cartaz, que habita a composição como senhor-da-casa, num preto e branco da memória fraca mas lúcida, transfigura o cenário de fim dos tempos. Reconhecemos a pose de sedução que o jovem copia de um manual de fotografia de moda, mas o erotismo perde-se na direcção do olhar; não nos olha, apenas nos seduz em segunda-mão.
É um faz-de-conta eficaz, como os contos de fadas, de aliens e das imagens fotográficas. E assim seguimos a simulação errática dos diversos planos que o afastamento do cartaz do muro que o sustenta, nos define: as sombras que se refractam na ondulação do pano e seguem constituindo veredas e caminhos na cartografia da parede, que se desloca para uma versão de perspectiva triangular.
Mariano Piçarra, com a câmara e o imaginário, reconstrói a aparência das coisas, dá-nos a inquietação de um reconhecimento nas formas que apenas se inscrevem, muito nítidas, sem jogos de luz e sombra, porque tudo se concentra num olhar desviado.
Já conhecíamos isto tudo em fotografias suas: as texturas que recriam mundos, volumes que fabricam teoremas, disposições que falam de ensaios-e-erros do nosso modo de ver, do nosso modo de sentir.
O muito que cabe numa imagem fotográfica.”
Maria do Carmo Serén
Mariano Piçarra (1960-)
Designer da Fundação Calouste Gulbenkian,
professor de design na Fac. Belas Artes de Lisboa,
Professor de Museografia, fotógrafo
Expõe individualmente desde 1983
4 comentários:
Sérgio,
obrigado por nos presentear a todos com a presença da Maria do Carmo Serém que é, para mim, das poucas pessoas que escrevem (muito) bem sobre fotografia em portugal.
Há muito que visito este excelente "Arte Photografica". E continuarei a fazê-lo. Deve ser por também partilhar este gosto pela fotografia.
É também por isso que este blogue continua, com muito gosto da nossa parte, a constar das "Ligações" na barra lateral do nosso blogue colectivo.
Um óptimo fim-de-semana para todos.
http://atribulacoeslocais2.blogspot.com/
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