02 julho, 2007

Crónica


Bernd e Hilla Becher

Um encontro com a exposição Typologien Industrieller Bauten (Tipologias de edifícios industriais)
Berlim, Setembro de 2005

Até parecia que tínhamos saído na estação de comboio errada porque o que havia por ali eram pequenos prédios de habitação, descampados, estaleiros e fábricas. Fábricas mais desactivadas do que a funcionar. O mapa dizia que era ali, por aqueles lados. Mas nada, nem sinais do que podia ser um museu de arte contemporânea: o The Hamburger Bahnhof – Museum für Gegenwart.
À estranheza do lugar juntou-se a estranheza do olhar das pessoas que abordamos com a pergunta, em inglês, sobre se sabiam onde ficava o tal Hamburger Bahnhof. Já tinha dado para perceber que o inglês não é uma língua muito simpática na Alemanha, mas o que se pedia era só que articulassem o mínimo que fosse, um “left”, um “right”, ou que esticassem o indicador em determinada direcção.
Ultrapassado o desnorte inicial, lá chegamos à antiga estação que, no último quarto do século XIX ligava Hamburgo e Berlim de comboio. A ideia era ir à descoberta do museu sem saber, à partida, que exposições havia em permanência ou em rotatividade. O que nos chamou a atenção, creio, foi a fotografia da fachada principal do edifício e a ligação - que funciona quase sempre - entre antigas instalações industriais e espaços para exibir arte. No Hamburger Bahnhof, para mim, ficou provado que o ferro, o tijolo, o pé alto e o cheiro a óleo jogam bem – nem sei bem explicar porquê - com as telas, as instalações, os vídeos e as fotografias de criação contemporânea.
E foram justamente as fotografias que aqui mais nos supreenderam. As fotografias de Bernd e Hilla Becher, de quem já tinha visto uma ou outra obra, mas nunca uma grande exposição como a que tivémos a sorte de encontrar em Berlim (Typologien Industrieller Bauten - Tipologias de Edifícios Industriais). E é perante o conjunto dos conjuntos de imagens “tipológicas”, como os Becher lhes chamam, que ficamos com a noção aproximada da magnitude do projecto que entusiasmou o casal durante quase 50 anos.
Logo às primeiras grelhas de imagens o sentimento que nos assalta é de incredulidade. É difícil não nos questionarmos sobre o que é que levou realmente este homem e esta mulher a dedicarem metade da vida a fotografarem silos, depósitos de água, fornos de cal e outros tipos de construções industriais que formam, à primeira vista, contextos paisagísticos repugnantes para os olhos. São sítios onde não apetece estar. Formas difíceis de ver. O que raio os moveu? O sucesso e a fortuna imediatas não foram de certeza, porque só passados quase 20 anos após as primeiras imagens é que os Becher viram o seu trabalho reconhecido dentro e fora da Alemanha.
Depois da incredulidade veio a estranheza. Por mais que façam parte da nossa memória visual, não é imediata nem fácil a aproximação ao sentido estético destas formas, normalmente identificadas com estereótipos negativos como o da exploração sem limites dos recursos ou a intrusão em espaços naturais. O certo é que à medida que percorríamos as salas do Hamburger Bahnhof fomos assimilando a mensagem que estava na origem e na razão daquelas séries de fotografias, meticulosamente arrumadas em categorias e em tipos. E isso aconteceu não tanto pela força de ver tantas imagens muito parecidas entre si, mas pela força da gramática visual com a qual os Becher querem que vejamos as suas imagens.
Essas “regras de ver”, que passam sobretudo pela subtileza da comparação, impuseram-se quase sem nos darmos conta. A meio da exposição já olhávamos para um elevador de cascalho com outros olhos de ver. Bernd e Hilla Becher ensinaram-nos que é possível encontrar beleza naquelas “esculturas anónimas”, erigidas sem qualquer pretensão de monumentalidade ou reconhecimento estético. Fizeram com sentíssemos naquelas peças de engenharia rude um resquício de humanidade e de génio. Fizeram com que sentíssemos admiração pelo que nos era invisível. Provocaram a dúvida e desfizeram-na. Ensinaram-nos a ver uma realidade envergonhada, cheia de complexos existenciais. A sua objectiva ensinou-nos a ver, não só através dela, mas com ela. Sem qualquer dose de paternalismo bacoco, fizeram com que chegássemos ao fim com a sensação de descoberta de uma nova realidade que até ali nos passava ao lado. E não é também para isso que serve a arte?

1 comentário:

Anónimo disse...

Texto escrito com a maior perfeição. Escrito por um verdadeiro escritor. Impressionou-me mais o texto do que as fotografias. Obrigado por escreveres assim sobre o que há a ver.

 
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