Julia Margaret Cameron, The Echo, 1868
Ponho-me a olhar as fotografias. Conheço as caras e não as conheço, congeladas a meio de uma expressão com qualquer coisa de incompleto nelas. Não é que lhes falte vida, têm vida, falta-lhes uma parte do que são, no caso de lhes tocar toco papel, não carne e ainda por cima, em algumas delas, com um rectângulo de vidro a separar-nos. Só os mortos estão inteiros nos retratos, porque se tornaram retratos, são retratos, e o que guardo na memória vai-se desarticulando, diluindo, deixando de ter forma: gestos, atitudes, cheiros que se desvanecem lentamente como o perfume nos frascos vazios que conservam uma vaga aura adocicada de flores.
No caso dos vivos encontro fragmentos deles que me não chegam nem consolam. Olham-me desprovidos de voz e de espessura. Digo-lhes o nome e não respondem.
Digo
- Tu
e observas-me indiferente, sempre com os mesmos brincos, o mesmo penteado, a mesma blusa, a mesma idade que recusa os anos. Digo
- Tu
e nenhuma mão chega à minha cara, não respiras contra mim, não me procuras, aprisionada na moldura. Porque é que o teu peito não respira? Porque é que as tuas pernas não se enrolam nas minhas? Porque não sais daí? Será o mesmo, o teu nome? Ou será que foi o meu nome a mudar? Perguntas, perguntas. Cheio de perguntas sempre.
(...) Retratos.
Nós de pé nos retratos e portanto vivos. Conheço as caras e não as conheço. Congeladas a meio de uma expressão com qualquer coisa de incompleto nelas. Olham-me desprovidas de voz e de espessura. Não me sinto triste. Palavra de honra que não me sinto triste. Sentado a esta mesa vejo um avião chegar. E, de súbito, uma alegria inexplicável: acho que é por ter corpo e estar vivo. Corrijo: tenho a certeza que é por ter corpo e estar vivo. E o meu coração ou o despertador
(um deles)
a bater, a bater.
António Lobo Antunes, Retratos, Visão, 25.05.2006
(manipulação gráfica: artephotographica)
2 comentários:
suki desu
this pic makes me feel i'm dead
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