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© Paolo Pellegrin/Magnum Photos |
"Sempre que pressionamos o botão da câmara damos voz a uma impressão do mundo"
Vera Moutinho, Sérgio B. Gomes
(Público, 19.04.2014)
O italiano Paolo Pellegrin (Roma, 1964) é um dos fotojornalistas mais premiados do mundo. As distinções e as bolsas de trabalho que lhe foram atribuídas ao longo dos últimos 25 anos impressionam não só pela quantidade (soma dez World Press Photo) mas sobretudo pela sua origem, um currículo onde aparecem algumas das mais reputadas instituições ligadas à fotografia: Leica Medal of Excellence, Robert Capa Gold Medal Award, W. Eugene Smith Grant in Humanistic Photography...
Decidiu estudar fotografia em meados dos anos 80, depois de ter abandonado um curso de arquitectura. Em 1991, comprou um carro em segunda mão, encheu-o com todo o trabalho que tinha feito e guiou até Paris, onde convenceu o patrão da Agence VU’, Christian Caujolle. "Não foi difícil entrar", revela-nos numa conversa telefónica. A dificuldade veio depois: não queria defraudar expectativas. A região dos Balcãs esteve várias vezes sob escrutínio do seu olhar, que procura sobretudo um tipo de fotografia que permanece “inacabada”. Em 2000, tornou-se fotógrafo nomeado pela cooperativa Magnum, e, em 2005, passou a ser membro efectivo da agência.
Nos últimos dois dias, esteve em Portugal para presidir ao júri da quinta edição do Prémio de Fotojornalismo Estação Imagem/Mora 2014 (único do género em Portugal), ao lado de Alessandra Mauro, curadora de fotografia, Christopher Morris, fotojornalista da agência VII, Pablo Juliá, director do Centro Andaluz da Fotografia, e Jérôme Sessini, fotojornalista da Magnum. Os prémios serão hoje revelados, em Mora, no Alentejo.
Com uma carreira de quase 25 anos, está cansado de imagens?
A fotografia, como a linguagem, está em constante evolução. Sou um fotógrafo diferente hoje do que era há alguns anos. Nesta evolução, nesta mudança da minha linguagem visual, há um interesse contínuo na investigação.
Lembra-se do último trabalho de fotojornalismo que o impressionou?
O fotojornalismo é uma das formas - não a única, certamente – de me relacionar com os acontecimentos. Jornalismo e fotojornalismo. E não só, literatura, cinema... Interesso-me por exemplo pelo Médio Oriente, pela Síria, pela questão dos direitos humanos, ambientais... Mas especificamente, entre outros exemplos, um trabalho que me vem imediatamente à cabeça é o do Jérôme Sessini em Kiev, na Praça Maidan, de fotografia e vídeo. Impressionou-me profundamente.
Estudou arquitectura antes de estudar fotografia. Isso deu-lhe alguma vantagem como fotojornalista?
Tudo o que fazemos traduz-se na voz fotográfica. Os livros que lemos, os filmes que vemos, as pessoas que amamos. Tudo se torna a nossa voz. A arquitectura, sobretudo nesses anos de formação, ajudou-me com certeza a pensar em termos espaciais. A organizar elementos no espaço, que é obviamente uma das coisas que a fotografia faz.
E o que o fez estudar fotografia? Era algo que já estava presente nessa altura?
Os meus pais são arquitectos. A certa altura senti que tinha de encontrar o meu próprio caminho. Romper, de certo modo, com um "ofício" de família. A fotografia combinava uma série de coisas que me interessavam. A fotografia documental, enraizada em questões humanas. O meu pai sempre teve máquinas fotográficas. Estive numa escola que acabara de abrir em Roma e foi um momento muito bonito na minha vida, uma epifania, em que percebi plenamente que a fotografia podia ser a forma de eu expressar a minha voz. Sinto-me muito afortunado por ter tido esse momento. A minha vida mudou. Tinha um objectivo.
Foi difícil convencer o Christian Caujolle a aceitá-lo a agência VU'? Escolheu na altura algum portfolio em particular para o impressionar?
Não foi difícil, na verdade. Eu não falava uma palavra de francês, não tinha muitos recursos, mas na altura quando me mudei para Paris, com 20 e tal anos, Paris era -talvez ainda seja - um sensor para a fotografia. Através de um amigo fotógrafo em Paris consegui uma lista de agências, que ele achava boas. A primeira na lista era a agência VU', a segunda era a Contact. Fui até à Agencia VU' e explicaram-me como que é o sistema funcionava. Tinha de deixar um portfólio e ligar de novo uma semana depois. Ou to devolviam ou te marcavam uma entrevista com o Christian Caujolle. Deixei o meu portfólio, não era nada de especial, eram histórias em que tinha trabalhado em Itália. Regressei uma semana depois e disseram-me que o Christian me queria conhecer. Obviamente deve ter visto alguma coisa ou a semente de alguma coisa, porque me convidou para me juntar à agência. O Christian era muito generoso, muito presente, havia uma geração de fotógrafos mais velhos que eu admirava e fiquei na agência durante 10 anos. Cresci muito, foi uma escola. Mas não foi difícil entrar na agência. A dificuldade veio mais tarde, eu queria fazer um bom trabalho e não defraudar expectativas.
A entrada definitiva na cooperativa Magnum, em 2005, mudou de alguma forma o seu trabalho como fotojornalista?
Entrei na Magnum em 2000. Entra-se em diferentes etapas, começa-se por nominee, mas em 2005 tornei-me um full member da cooperativa. Não mudou a minha maneira de trabalhar, já era um fotógrafo maduro, tinha 36 ou 37 anos quando entrei. O que fez certamente foi estimular-me, sobretudo devido ao processo de trabalho. De quatro em quatro anos tens de apresentar um novo portfólio de modo a ganhar acesso ao patamar seguinte. Trabalhei arduamente nesses anos. Senti que tinha mais responsabilidade por fazer parte de um lugar com aquele legado, que eu queria honrar.
Há alguma desvantagem em fazer parte de uma agência com esse legado?
A Magnum é muito especial, para o bem e para o mal. Não consigo pensar numa desvantagem evidente. A Magnum está a tentar sobreviver num cenário em constante mutação. Esforçamo-nos muito para mantê-la viva. Não é perfeita, mas é o mais próximo das minhas aspirações e ideais. É algo que até já nem devia existir: é uma espécie de utopia, o facto de ser uma cooperativa, não é um modelo de negóco moderno. Mas é parte de mim e da minha vida, não só da minha fotografia.
Trabalhou nos maiores conflitos armados das duas últimas décadas. A tragédia da guerra é um dos eventos mais fotogénicos da humanidade. Como é que lida com esta contradição?
Quanto estamos perante o extremo da experiência humana, como nesses conflitos, tudo tende a ser aumentado. Certos momentos podem ser fotogénicos mas depende do que se procura. Interesso-me pela questão do tempo, da História, da relação entre a fotografia e os eventos, como é que recolhemos documentos visuais dos acontecimentos. Essa ideia é central no meu trabalho. Tento honrar o privilégio que tenho como fotógrafo de estar exposto a certas situações. Tento ser respeitoso, tirar a melhor fotografia. Não fico ofendido com uma fotografia formalmente boa num teatro de conflito, mas não procuro apenas isso, seria aburdo. Procuro por conteúdo, pela relação com o que está a acontecer.
Como é que se prepara antes de sair para um novo trabalho?
Depende se é um local onde já estive, se é uma história perigosa ou não. Além disso, hoje em dia as coisas mudaram, sou pai de duas meninas, o meu sentido de responsabilidade mudou. Tento não me expor tanto ao perigo. Às vezes gosto de saber muito, pesquiso, leio, falo com outras pessoas. Noutras circunstâncias vou e começo a navegar do zero.
Uma das suas afirmações mais conhecidas é a de que está interessado num tipo de fotografia "inacabada", mais "sugestiva". Como é que se conseguem esses dois atributos?
O que me interessa é a fotografia como uma forma de diálogo, de conversação. Como fotógrafo e como consumidor. Para ter esse potencial a fotografia deve ser aquilo que eu chamo "inacabada", uma fotografia que deixa espaço, uma abertura para quem vê se relacionar com ela. E ser transformada por esta troca- É sobre a dúvida, tentar penetrar uma superfície, fazer perguntas. Se essas perguntas se manifestarem nas nossas fotografias então podem tornar-se as questões de quem vê. Interessa-me muito essa possível conversa.
O seu primeiro fotolivro, publicado em 1997, estava relacionado com crianças, talvez um dos maiores clichés da imagem fotográfica. Tentou combater esta percepção? Como?
Não o vejo como o meu primeiro photobook, foi uma encomenda de uma ONG italiana para trabalhar em três ou quatro países. Foi um tópico que foi escolhido por mim. Mas concordo até certo ponto com o facto de pode ser um cliché mas também acho que não devemos parar perante isso. É um cliché se o tratarmos como tal, se não nos distanciarmos do que faz dele um cliché.
Nos últimos anos tem escolhido mostrar-nos alguns dos seus trabalhos em formato panorâmico. O tsunami no Japão, Israel, Palestina... Porquê este formato?
No pós- tsunami no Japão estava perante uma escala de destruição que não pensava ser possível. Era tanta coisa que eu não conseguia lidar com isso em termos fotográficos. A panorâmica foi uma maneira de tentar normalizar a escala do que estava a ver. Foi uma escolha com um objectivo muito claro. Da mesma maneira, em Gaza, senti que estava a testemunhar um nível de destruição cuja magnitude o formato panorâmico me iria ajudar a transmitir.
Como júri, o que é que procura nas fotografia?
Uma ideia e como está executada. Um sentido de narrativa: não estamos a olhar para fotografias individuais, mas para histórias. Sentido de edição, ritmo. E depois beleza, mistério, magia, humanidade. Todas as emoções que a fotografia tem a capacidade de abarcar. A fotografia é uma linguagem complexa. Hoje tivemos um dia longo a olhar para fotografias e encontrámos verdadeiras jóias.
Os fotojornalistas estão a ficar sem o "luxo do tempo"?
Se olharmos da prespectiva da indústria, o sistema editorial tende a dar menos tempo aos fotógrafos, com algumas excepções – como a National Geographic. Mas, por outro lado, a indústria é apenas parte da equação. O tempo é o que damos a nós mesmos para uma história. Podes sempre ir para um sítio no teu tempo. Como fotógrafo profssional sempre aceitei a ideia de uma vida dupla. Uma onde trabalho por encomendas, para clientes, gero fundos para mim, para a minha família, mas também para a minha fotografia.
Nessa indústria de que falou, a manipulação digitial de fotografia tem sido amplamente discutida. É possível impor limites?
No fotojornalismo há um elemento de uma fotografia que é factual. Não estou a dizer que é a realidade, mas tem uma relação com os factos. Discordo profudamente da manipulação, de modificar. Sempre que pressionamos o botão da câmara damos voz a um pensamento, a uma impressão do mundo, aceito isso como uma forma de interpretação. Quero isso, aliás, interessa-me experienciar o mundo através dos olhos de Gilles Perez, por exemplo. Onde traço a linha - e é uma linha que é ultrapassada várias vezes - é que o Photoshop se imponha. Os jovens fotógrafos, que são nativos digitais e não têm a experiência do filme, da câmara escura, têm esta ferramenta poderosa que lhes permite fazer o que quiserem com uma fotografia. Ao manipular está-se a destruir essa impressão, esse contrato que o fotógrafo tem com o que fotografa e também com que o vê. Se isso se perde então muito do propósito do que fazemos perde-se também.
É sagrado?
É, é sagrado. Se tirarmos isso tudo, cai por terra. Já não és uma testemunha. É sempre pessoal e subjectivo. Mas estar num local é a única forma de interferir permitida.
Nestes 20 anos ganhou dezenas de prémios, entre eles dez World Press Photos. A expectativa de vencer um prémio pode toldar o modo de olhar de um fotojornalista?
Os prémios são um produto da nossa indústria. Não deve ser aquilo que motiva o fotojornalista, sobretudo se for à procura de algo que acha que é a estética mainstream no mundo dos prémios. Para a maioria dos fotógrafos, onde me insiro, quero acreditar que não se tira fotografias pensando que no final do ano se vai enviar a concurso. Isso não é mau, faz parte do sistema. Como jovem fotógrafo, por exemplo, se ganhas um prémio um editor pode reparar em ti, é importante.
Qual foi a última fotografia que tirou?
Estive recentemente em Milwaukee como parte de um projecto colectivo da Magnum, chamado Postcards from America. Tirei fotografias panorâmicas de Milwaukee durante duas semanas, sobretudo da decadência industrial.
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