11 abril, 2014

pieter hugo




Pieter Hugo. Da série There's a Place in Hell for Me & My Friends
© Pieter Hugo, Cortesia da Galeria Stevenson Joanesburgo/Cidade do Cabo | Yossi Mil, Nova Iorque


Um fotógrafo mais perto das dúvidas do que das certezas
(ípsilon, Público, 26.03.2014)

É para abalar a ordem com que vemos o mundo que Pieter Hugo trabalha. Muito do que vemos nas fotografias deste sul-africano, por mais contemplativas que possam apresentar-se, serve para pôr em causa os olhares confortáveis, os olhares de quem chega até elas com mais certezas do que dúvidas.

Com uma carreira de pouco mais de dez anos, Pieter Hugo (Joanesburgo, 1976) tem vindo a afirmar-se como um dos nomes mais estimulantes da fulgurante cena artística ligada à fotografia na África do Sul. Em This Must Be The Place (Este É o Lugar), retrospectiva que a Fundação Calouste Gulbenkian mostra em Lisboa, parte integrante do Programa Próximo Futuro, estão representadas as principais séries de uma obra pautada por imagens que procuram inquietações. Estão lá as feridas que teimam em não sarar deixadas pelo apartheid, as consequências do comércio global e do pós-colonialismo, na África do Sul e em vários países da África subsariana, como o Gana, o Botswana ou a Nigéria, país onde se sente “em casa” e onde captou a série que o atirou para a ribalta internacional, The Hyena & Other Man. Estão lá a violência, os preconceitos ligados à cor da pele e à nacionalidade, as pistas para a desconstrução da ideia de família como terreno de convivência harmónica e funcional. E vemos ainda problematizadas questões de sobrevivência, de hierarquia e de afirmação de estatuto.
Nomeado em 2012 para um dos mais relevantes prémios internacionais de fotografia, o Deutsche Börse Photography, afirma-se como um artista que gosta de apagar fronteiras, sobretudo as que foram riscadas no espaço geográfico, mas também aquelas que vão sendo erguidas à volta das relações humanas. A família e os amigos têm estado cada vez mais no centro do seu trabalho, numa tentativa de compreender o sentido de pertença, a ligação a um lugar e a noção de “casa”. Para já, a fotografia não lhe tem dado grandes respostas. É um suporte em relação ao qual não alimenta grandes ilusões. Mas confessa que ainda procura perceber se através da fotografia é possível chegar a algo mais profundo do que a superfície. Relato de uma troca de emails no meio de um trabalho em curso.

A fotografia ainda é relevante?
Na essência, a fotografia é sobre o olhar. E sobre o desejo de olhar. Permite estabelecer uma ligação ao mundo. E hoje, mais do que nunca, é importante encontrar novas maneiras de olhar.

Acredita que através da fotografia poderemos alguma vez compreender a complexidade de um país como a África do Sul, ou um continente como o africano?
Eu posso provocar perguntas e mostrar alguns aspectos de um e de outro. Mas será que é mesmo possível compreender um país, um continente? Duvido.

Disse publicamente que a África não o motiva particularmente como sujeito fotográfico. Isso não é contraditório com o que vemos nesta retrospectiva que não tem uma série fora de África?
Bem, os lugares onde trabalho são uma extensão da minha topografia. Se fosse de nacionalidade espanhola talvez não me perguntasse isto...

A noção de “exótico” atormenta-o enquanto fotografa?
Algumas vezes sim. Claro que estou consciente das diferentes leituras do meu trabalho consoante os lugares e os contextos em que é mostrado. Mas, no fundo, vemos nas imagens aquilo que queremos ver. Quem vê leva sempre a sua cultura visual. E eu não consigo adaptar-me à cultura visual de toda a gente. Não tenho qualquer interesse particular em representar o “exótico”.

Acha que ainda existe uma atitude colonialista no acto de ver fotografias captadas em África?
Nos media de massas sim, em absoluto. No universo da arte, há algumas mudanças a acontecer.

Abdullahi Mohammed com Mainasara, Ogere-Remo. Da série The Hyena & Other Men, Nigéria, 2005-2007
© Pieter Hugo, Cortesia da Galeria Stevenson Joanesburgo/Cidade do Cabo | Yossi Mil, Nova Iorque


The Hyena & Other Men é uma das suas séries mais reconhecidas. Refere-se ao domínio, à submissão e ao instinto de sobrevivência de um grupo de homens na África Ocidental. O que é que acha que pode ter estado na base deste sucesso?
É difícil responder... sinceramente, não sei. Na verdade, já nem penso muito neste trabalho por causa do fenómeno de hibridização das imagens... o conflito entre o velho e o novo.

O que é que o seduziu em particular nestes homens nigerianos que se dedicam a domesticar e a exibir bestas?
Foi puro impulso. Vi uma fotografia com um deles e soube de imediato, com todo o meu ser, que tinha de ir conhecê-los.

A Nigéria foi um dos países que até meados dos anos 1990 proibiram sul-africanos brancos de entrar no país, um protesto pelo regime de apartheid. Como foi trabalhar aqui?
É um lugar difícil para trabalhar, mas incrivelmente estimulante.

Estimulante em que sentido? Quer partilhar alguma história em particular?
Sempre que vou à Nigéria, tenho a sensação de estar a entrar em casa. Sempre que vou em direcção ao aeroporto, vejo alguma coisa que me diz que regressarei para trabalhar noutro projecto.

Manifestou várias vezes dúvidas acerca da eficácia do meio que usa, a fotografia, para mostrar aquilo que mostra. Que certezas tem sobre a fotografia?
Está sempre a mudar. Neste momento, honestamente, não tenho grandes certezas acerca dela! Estou a tentar perceber se a fotografia consegue apenas mostrar-nos a superfície do mundo ou se consegue ser mais alegórica e metafórica.

Diz que é um fotógrafo mais próximo da ficção do que dos factos. As estratégias e as ferramentas da ficção são as mais eficazes para nos aproximar da realidade? Com que realidades nos quer confrontar?
Com a minha. Com a minha maneira de olhar.

Que trabalho foi o mais complexo de concretizar? Porquê?
Talvez este que acabei de realizar, a série Kin. Apenas uma pequeníssima parte deste trabalho vai ser mostrada em Lisboa. A África do Sul é um lugar tão dividido, esquizofrénico, ferido e problemático... é uma sociedade muito violenta e as feridas do colonialismo e do apartheid continuam ainda muito abertas. Temas como a raça e a identidade cultural atravessam toda a sociedade. O legado da segregação racial lançou uma longa sombra... Como é que se pode viver numa sociedade como esta? Como é que alguém pode assumir responsabilidade pela história (se é que alguém deve sequer tentar)? Como é que se pode constituir uma família numa sociedade tão conflituosa? Antes de casar e ter filhos, estas questões não me atormentavam; agora, são mais presentes, mais confusas.

Há cerca de oito anos, comecei a fotografar algo tendo como ponto de partida a noção de “casa” (o que quer que isto signifique), nas suas facetas íntima e pública. Olhar com sentido crítico para a nossa “casa” implica olharmos para nós próprios e para os que nos rodeiam. É sentir o peso da história e ter em consideração o espaço que cada um ocupa nela. É ter em conta a relação que se estabelece com os que nos são próximos — é olhar para os laços ténues que nos ligam e que nos separam uns dos outros. A “casa” é onde coexistem sentimentos de pertença e de alienação. Esta noção de pertença liberta-nos ou prende-nos? Liga-nos ao peso terrível da história ou liberta-nos dela?

Tenho sentimentos profundamente ambíguos sobre o que significa estar aqui. Passaram oito anos e ainda não encontrei respostas muito firmes para nenhuma destas questões. Se há alguma coisa em relação à qual me sinto mais confuso, é em relação àquilo que significa “casa”. Este trabalho luta com estes dilemas, mas tem falhado em dar-me respostas.

Pode dizer-se que o fotojornalismo abafou outros géneros de fotografia na África do Sul por causa do impacto internacional do apartheid?
Durante os anos do apartheid, sim. No presente, acho que não. Se olhar hoje para alguns dos melhores fotógrafos sul-africanos, poucos deles são fotojornalistas “tradicionais”... David Goldblatt, Guy Tillim, Zanele Muholi, Mikhael Subotzky, Jo Ractliff, Roger Ballen... Todos são artistas, activistas, documentaristas. Todos estão ligados ao vocabulário da fotografia.

Acha que o sucesso da fotografia sul-africana na actualidade tem que ver com essa necessidade de vermos e compreendermos este país através de outras estratégias fotográficas?
Definitivamente.

Em conversa com o comissário desta retrospectiva, Wim van Sinderen, disse que foi o encontro com o trabalho de David Goldblatt que o fez pensar na fotografia de uma forma diferente. O que é que descobriu na fotografia de Goldblatt que provocou essa viragem e o abandono do fotojornalismo?
Num certo sentido, foi o seu “jornalismo lento”. O seu estilo profundo, empenhado e neutro.

Entende aquilo que faz como um acto político?
Na minha prática, sim. A fotografia não é o que era há dez anos. Somos todos fotógrafos agora. É um meio que está numa transição. Será interessante ver como é que os museus e as instituições vão lidar com o dilúvio de imagens que surgiu nos últimos anos.

A pele e as questões (contradições) a ela associadas têm assumido um protagonismo cada vez maior no seu trabalho. Como é a que a fotografia pode contribuir para desmascarar os preconceitos baseados na cor da pele?
Não estou seguro de que consiga.

Mas pode pelo menos confrontar-nos com os equívocos desse preconceito…
Bem, penso que o meu trabalho confronta claramente essas questões. Por exemplo, na série There is A Place in Hell… aparecem os meus amigos. São de raças e etnias variadas. São todos sul-africanos. Ou pessoas que fizeram da África do Sul a sua casa. Todos cresceram com o regime de apartheid. Todos carregam o peso da história. Ainda assim, conseguimos negociar um espaço onde ultrapassamos os preconceitos e onde conseguimos ser fraternos.

Nessa série em particular, mostra-nos fotografias a preto-e-branco onde a pigmentação da pele, comum a todos, é usada para nos provar que, afinal, somos todos coloridos. É uma série engenhosa tecnicamente que procura penetrar além da superfície. É também para nos vermos ao espelho?
Tudo na África do Sul é negociado, incluindo as regras de coexistência relacionadas com a língua, raça, ideologia e classe. A África do Sul é um dos países do mundo mais desiguais economicamente. Estou interessado na relação do homem com a paisagem. Na maneira como a moldamos e como a paisagem e o seu ambiente nos deixam marcas e se manifestam em nós fisicamente. À medida que vamos deixando as nossas pegadas na Terra, a história também nos vai deixando as suas marcas. Por um lado, estas imagens funcionam como um catalisador para nos confrontarmos com as questões que referiu.

Nas séries Judges e Barristers & Solicitors, o que vemos são retratos de agentes da justiça negros que usam as vestes da tradição judicial. Aqui, dá a entender que usou a fotografia simplesmente para vermos a realidade…
Não tenho a certeza se concordo com a sua observação... Será que a realidade se assemelha a uma pintura de Velázquez? Para mim, estes retratos são (como a maior parte do meu trabalho) sobre o equilíbrio entre dignidade, autoridade e vulnerabilidade. Os juízes olham-nos com autoridade legal. A sociedade da qual fazem parte escolheu-os para guardiões da moral colectiva.

O que me parece é que nestas séries usa a fotografia como um meio para sublinhar a realidade, aquilo que existe. Como se ainda fosse necessário ver para crer…
Bem, dependendo da leitura que se faça do trabalho, podemos estar perante um possível eco prolongado do colonialismo. Ou vê-lo como uma hibridização. A ironia visual nas imagens é flagrante.

O retrato é um dos seus géneros de eleição. Fale-nos um pouco do seu processo de trabalho neste campo... Que relação procura estabelecer?
Para ser honesto, varia de projecto para projecto e de pessoa para pessoa.

Mas em que momento sente que chegou ao retrato que idealizava?
Nunca estou completamente seguro. Esta é uma das razões pela qual os fotógrafos são tão maus editores de fotografia. Porque lhes associam energia e emoção mesmo quando as imagens foram feitas apenas com as qualidades das imagens. Muitas vezes, não há qualquer relação entre uma coisa e outra.
Costumo imprimir as fotografias e tento viver com elas o máximo de tempo possível. Se não me irritarem (ou se não lhes detectar falhas) durante alguns meses, provavelmente são boas imagens.

Disse recentemente que a curadoria geográfica da fotografia não faz sentido. De que forma gostaria de ver enquadrado o seu trabalho?
Hmmmm… É importante que tenhamos curadores inteligentes que sejam capazes de erguer trabalhos de maneira criativa e que sejam visual e intelectualmente estimulantes. Não tenho nenhum problema com a curadoria geográfica em si – sobretudo se me mostrar uma nova maneira de ver o mundo, ou se mudar a maneira como o vejo. No entanto, é comum ver projectos de curadoria geográfica preguiçosos que ajudam a perpetuar visões estereotipadas do mundo.

A percepção de espaço geográfico nas suas séries é muito ténue. Gosta de apagar fronteiras?
Certamente que sim! Vivo num conflito permanente entre ser caseiro e nómada!

Algumas das suas séries usam truques do próprio meio fotográfico (técnicos ou perceptivos) para nos alertar para coisas pouco óbvias ou que desconhecíamos. Em Nollywood [sobre a indústria de cinema nigeriana], por exemplo, levamos algum tempo a perceber que estamos perante ficção pura. Procura provocar-nos desconforto? Com que objectivo?
Sim, em absoluto. É aquilo que mais procuro fazer. Acho as coisas que são belas em seu próprio benefício absolutamente revoltantes.

Em geral, movimenta-se em territórios de ruína, de caos, de miséria e de ambiguidade, mundos que estão longe de “um final feliz”. Há alguma intenção denunciadora na sua fotografia?
Não sei se percebi bem a sua questão… A minha visão do mundo incorpora ao mesmo tempo luminosidade e escuridão.

O que quero dizer é que num trabalho como Permanent Error, onde vemos crianças a apanhar lixo electrónico numa megalixeira, é difícil ignorar o lado denunciador da fotografia. Sentiu essa carga?
Para mim, ser um fotógrafo é o mesmo que ser um autor – posso escrever estórias curtas, narrativas ficcionadas, ensaios críticos, pequenos artigos, etc, etc... Como artista, tenho o direito de me movimentar por entre géneros e interrogar todos os meios de expressão. Enquanto trabalhei em Permanent Error, no Gana, no meio de uma lixeira de computadores, em Accra, é impossível não me sentir zangado e triste com aquela situação. É difícil olhar para este espaço sem moralizar a situação. Deixei que uma ONG que lida com questões relacionadas com lixo electrónico usasse as minhas fotografias para defender os seus pontos de vista.

Acha que temos um olhar voyeurista em relação a África?
Quem é o “nós” da sua pergunta? Eu certamente não tenho. Penso que a fotografia e o acto de fotografar são intrinsecamente voyeuristas.

Digamos que este “nós” está situado no hemisfério norte...
Sim, geralmente acontece. Mas instituições como a [Fundação Calouste] Gulbenkian e o curador António Pinto Ribeiro têm programas dinâmicos para combater esta visão e trabalham para nos dar novas maneiras de ler África.

O seu universo pessoal e a imagem de si próprio aparecem com frequência. É uma forma de dizer que a arte e a vida são indissociáveis?
Arte e vida são inseparáveis. Sou um artista.

Diz que “a África do Sul é um país em processo de autodestruição”. O que é que o pode salvar? Quais são os principais problemas que enfrenta?
Estamos perante uma crise moral. Os líderes sul-africanos estão podres.

Qual foi a última fotografia que tirou?
Fiz duas fotografias ontem – uma da minha filha a dormir, outra de um rato morto.




Gabazzini Zuo, Enugu. Da série Nollywood, 2008-2009
© Pieter Hugo, Cortesia da Galeria Stevenson Joanesburgo/Cidade do Cabo | Yossi Mil, Nova Iorque

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