07 abril, 2014

à nossa frente

© Augusto Brázio


 O que se está a passar à nossa frente
(ípsilon, Público, 19.02.2014)

Aviso: isto não é o retrato fotográfico de um país chamado Portugal. A utopia é sedutora e talvez resultasse bem na lombada de um livro ou no vidro de uma galeria. Até porque se se conseguisse tirar uma fotografia de um país, o retrato era capaz de ser o género ideal - tem esse lado directo e condensado, capaz de conjugar muitas coisas numa só. Certo é que se há coisa de que o projecto Um Diário da República quer fugir a sete pés é do “retrato do país”, se o entendermos como tentativa de tudo mostrar, de estar em todas e em todo lado. Em vez disso, o colectivo kameraphoto, que em 2010 se lançou nesta empreitada pioneira de fotografar Portugal durante uma década, optou por uma abordagem mais próxima da deriva, dando a cada um dos seus membros total liberdade para captar o que quisessem e quando quisessem. É um diário escrito a várias mãos onde se vão inscrevendo imagens de um tempo que ameaça tornar-se histórico. Também é um diário errático, onde poderão faltar entradas e onde podem aparecer desabafos do tipo “Querido diário: hoje não me apetece fotografar”.

A lógica de Um Diário da República, que surgiu por ocasião das comemorações do centenário da proclamação da República, é simples: durante os anos pares o colectivo dedica-se a fotografar, nos anos ímpares concentra-se em mostrar o resultado do trabalho do ano anterior. Este trabalho de divulgação pode assumir todo o tipo de formas. Em 2013, para além de um site e de exposições, o suporte livro veio outra vez à baila, um sinal de que o namoro entre papel e fotografia continua forte e de que as possibilidades nupciais estão longe de estar esgotadas.

No final do ano passado, foram apresentados no Museu da Electricidade, em Lisboa, os últimos três livros de um conjunto de dez volumes que tem tudo para se tornarem um marco na edição de livros de fotografia em Portugal. Nunca se fez nada parecido. Nem na dimensão nem na qualidade.

Dentro destes dez livros estão ínfimas partes de um país que se chama Portugal. Muitas dessas imagens são facilmente reconhecíveis, outras nem tanto. E outras ainda são-nos completamente estranhas, fazem parte de universos visuais, de lugares, que nem sonhávamos que existiam. É um emaranhado visual que faz parte de uma abordagem em flânerie bem ao gosto de quem prefere acrescentar peças ao puzzle do que apresentar-nos o puzzle completo. Valter Vinagre, no colectivo desde 2003, assume esse posicionamento: “Creio que não se consegue dar uma imagem de um país. Quando muito o que fazemos é tentar acrescentar peças a um todo, e esse exercício não se esgota nas minhas imagens, nem tão-pouco nas imagens fotográficas. Aquilo que mostramos é um pensamento que se pode juntar depois ao de outros saberes e artes, como a música, o cinema, a antropologia... seria uma presunção e uma falsidade dizer que o que estamos a fazer é o retrato de um país”. Para percorrer este território a única carta de navegação disponível é uma ideia, “uma ideia que está escrita” e que se baseia na convicção de que “é fundamental trabalhar para um registo visual do que se está a passar à nossa frente”. “A partir daqui, basta manter o diálogo. Pôr as coisas em causa constantemente. Ir apalpando. Ir descobrindo e ter a presente a garantia de que este tipo de trabalho é movediço.”

Pedro Letria, um dos criadores de Please Hold, primeiro volume da série, sublinha a importância de se assumir que na fotografia “não há discursos estanques” e que num projecto desta natureza “ninguém pode ter a pretensão de querer explicar tudo muito bem”. “O que quer que seja que se consiga dar a ver daqui foi feito por aproximações, nada de muito imediato e fechado.” A própria motivação de partida, ligada ao contexto de crise do país, foi sendo esboroada à medida que os trabalhos foram chegando do terreno. “Fomos confrontados como uma situação bem mais grave do que aquilo que imaginávamos no início do projecto. Nunca pensamos, por exemplo, no elevado grau de destruição do tecido social, do Serviço Nacional de Saúde... que a destruição do Estado chegasse ao ponto a que chegou”, confessa Valter Vinagre. Perante isto, o colectivo optou por reagir com “discursos muito individualizados, tentando que cada um demonstrasse como pensa o seu país, como o sente, como se situa nele, como o olha”.

Para Filipa Valladares, comissária de fotografia e uma das autoras de um dos volumes do conjunto, Cândido, “não há muitos trabalhos como Um Diário da República, que não se esgota na fotografia, a reflectir visual e graficamente sobre o país”. E talvez aqui esteja a principal força desta segunda fase do projecto, que alia trabalhos fotográficos de grande qualidade a edições gráficas muito diversificadas e cuidadas. Ao olhar para o conjunto dos dez volumes publicados (que para já ainda só estão à venda através do site da kameraphoto), Filipa Valladares, fundadora da STET, especializada em livros de fotografia, vê um contraponto perfeito com PIGS [Portugal, Itália, Grécia e Espanha], de Carlos Spottorno, um dos fotolivros mais aclamados do ano passado, que plagia o aspecto gráfico da revista Economist e que se esforça por dar imagem aos principais clichés propalados pela maioria dos economistas sempre que se referem aos países com intervenção da troika ou que estiveram muito perto de receber ajuda externa. “PIGS dá o olhar dos economistas, que pode ser muito redutor. E faz uma ironia com essa abordagem. Os livros de Um Diário da República dão outros lados da vivência do país, fazem uma leitura mais ampla que não se concentra só na crise, nem nos aspectos menos positivos. Há alegria, cerveja, caracóis…”

Abandonar o tijolo
Guillaume Pazat, autor da ideia de Um Diário da República e responsável por liderar o projecto no seio do grupo, revela que as motivações que levaram o colectivo a decidir escolher uma estratégia de publicação multifacetada, em detrimento de um volume único como o “tijolo” que foi publicado em 2011, foram muito condicionadas pela incerteza do apoio à edição (que depois acabou por chegar através da Fundação EDP) e a vontade de tornar mais leve e actual a publicação de fotografia impressa em papel. “Não são fanzines, mas têm o espírito de fanzines, de coisa rápida. São mais curtas-metragens do que longas-metragens.” Cada edição normal dos livros custa 15 euros. As edições especiais assinadas custam 80 euros e são acompanhadas de uma prova fotográfica (tiragem de 50).

Para além deste caminho em relação à forma de apresentação das imagens, o colectivo decidiu convidar pessoas externas ao grupo para conceberem algumas edições. Filipa Valladares considera que esse passo foi fundamental para a “força” que hoje revela o conjunto, mas esperava ver ainda mais abertura. “Talvez pudesse ter havido mais leituras externas para que os trabalhos de selecção, sequenciação e design fossem ainda mais ricos. São sempre importantes os olhares de fora sobre aquilo que se faz dentro de um colectivo.” No balanço desta política de portas abertas na kameraphoto, Pazat classifica a experiência como “muito enriquecedora” e capaz de criar “dinâmicas muito próprias”. “A captação de fotografia é um processo criativo solitário, mas o resto que lhe está ligado não. É preciso convocar toda a ajuda e diferentes saberes. Quisemos alargar o projecto a pessoas fora da área da fotografia, tocar outros intervenientes e alguns acabaram por criar peças únicas só para estes livros. Como foi o caso de André Carilho, na ilustração, e Luís Pedro Cabral, no texto, no volume A Utopia Descobriu o Caminho Marítimo Para a Cura.



© Martim Ramos


Para a concepção de cada volume, os editores (que à excepção de Filipa Valladares pertenciam todos aos colectivo) podiam escolher livremente com quem trabalhariam, sendo que a única condição era não repetirem designers. A base de trabalho comum era uma pasta com cerca de 3000 fotografias, uma condição que criou repetições de imagens em vários livros que foram sendo apresentados ao longo de todo o ano passado. E aquilo que aparentemente podia ser visto como uma falha, transformou-se numa mais-valia que, nas palavras de Valter Vinagre, “permite perceber como as imagens podem ser usadas e mostradas de muitas maneiras”. “As mesmas fotografias ganham leituras diferentes nos vários livros dependendo das imagens que estão antes e depois. Isso é rico e quem tiver acesso aos dez volumes poderá fazer esse exercício.” Pedro Letria tem a mesma opinião, elogiando as “releituras” que permitem perceber “como as fotografias se moldam” aos diferentes contextos.

Na verdade, estas repetições passam quase despercebidas, tamanha é a diversidade de abordagens que faz com que cada imagem seja verdadeiramente única. Quando se olha para o conjunto, o que se vê não são apenas capas, formatos e cores diferentes – vê-se de maneira subtil um mosaico de personalidades, egos, gostos, manias, filiações e geografias. Cada livro revela maneiras de ser, traz cravada uma impressão digital de quem os criou. Revelam identidade, sem que a forma se sobreponha ao conteúdo. E essa será talvez uma das maiores vitórias deste Um Diário da República. Guillaume Pazat, que foi quem mais acompanhou todos os projectos, diz que todos os autores deixaram parte de si em cada livro. E tem razão. “Estou muito feliz com o resultado final. Gosto muito do conjunto, do design, das imagens mas o mais importante foi o trabalho de concretização dos livros. As pessoas deram o melhor de si. Hoje não há dinheiro para mandar pessoas fotografar desta forma livre, mas nós conseguimos fazê-lo. Acho que é um das coisas que vai ficar.”



© Nelson d'Aires

E o que vai ficar são visões tão peculiares e corajosas como a de Sandra Rocha, que viu num texto novelesco de Luís Pedro Cabral sobre Portugal a força das palavras, capazes de, ao mesmo tempo, demolir imagens e de as sugerir em pensamento (a única fotografia do livro é a da capa).

Ficará a sensibilidade e a persistência de Nelson d’Aires que insiste em mostrar-nos como são os rostos do desemprego e as paisagens de um país em Erosão, com o fantasma do texto do memorando da troika como pano de fundo. Ou o deslumbramento com os lugares e o espanto pelo poder das imagens que já existem na Melancholia de Martim Ramos.

Ficará essa viagem até às margens através de registos carregados de negro por Augusto Brázio em Bang!. Ou, nos antípodas deste mundo, o microcosmos rural que Valter Vinagre teima em querer dizer-nos que ainda existe e onde o verde reina. Verde que também abunda em Éden, ensaio de Pauliana Valente Pimentel que nos mostra, aqui a ali, como vai sendo possível o deleite e a ideia de paraíso.

Ficará também a energia de Jordi Burch, que jogou ao Cadáver Esquisito com Alexandra Lucas Coelho num pingue-pongue a demonstrar como as fotografias nascem em campos férteis. O que permanecerá ainda, será a perspicácia de Pedro Letria em encontrar nas imagens forças que desconhecíamos. Ou a tenacidade de Filipa Valladares de rasgar ao meio imagens de maneira a aguçar-nos a vontade de espreitar o outro lado. O que ficará é o imenso esforço de compreensão de Céu Guarda e o seu talento de edição que puxa pelas imagens a ponto de conseguirmos vislumbrar que gerações nos rodeiam.

No seio do colectivo, o entusiasmo com o que foi conseguido nestes dez livros, que podem ser vistos em exposição no Museu da Electricidade, em Lisboa até 16 de Março, é grande. A ponto de Guillaume Pazat querer repetir este formato de divulgação em 2015. Durante este ano, todos os fotógrafos serão desafiados a trabalhar apenas um tema em detrimento das imagens soltas que povoaram a maioria dos livros agora editados.

Será mais uma oportunidade de olharmos para dentro, de forma descomplexada e aberta. Céu Garda: “Portugal nunca se interessou por Portugal. Mas nós interessamo-nos por Portugal e queremos mostrá-lo, para vermos como somos e para que outras gerações também vejam um pouco do que fomos”. Ou seja, uma tentativa de contrariar a sentença de José Gil segundo a qual Portugal é um país onde “nada se inscreve”, um país onde “nada acontece que marque o real”. Talvez este Diário da República venha a marcar o real. Talvez se consiga inscrever. Pelo menos na nossa memória.




© Nelson d'Aires


© Augusto Brázio

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