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Hans-Michael Koetzle © Enric Vives-Rubio/PÚBLICO |
Fotografia portuguesa vai estar grande
no jubileu da Leica
O nascimento
da Leica, em 1914, é um dos marcos da história da fotografia. A marca alemã vai
assinalar o jubileu com uma grande exposição a inaugurar em Outubro. Imagens de
Paulo Nozolino e de um grupo de fotógrafos dos anos 50 formarão a grande
embaixada portuguesa em Hamburgo. O Museu do Chiado tentará depois trazer a
mostra para Portugal
Quando, em
2010, Hans-Michael Koetzle viu a exposição Batalha
de Sombras em Cuenca, Espanha, ficou de boca aberta. Andou deslumbrado de
um lado para o outro numa sala da Casa Zavala a perguntar: “Quem são estes
fotógrafos?” “De onde vieram?” A comissária Emília Tavares, do Museu do Chiado,
estava lá para lhe responder. E disse-lhe que eram portugueses e que tinham
fotografado sobretudo nos anos 50 e 60. Chamavam-se Gérard Castello-Lopes,
Victor Palla, Varela Pécurto, Eduardo Harrington Sena, Sena da Silva, Fernando
Taborda... Nesse dia, o jornalista e investigador alemão especializado em
história e teoria da fotografia apaixonou-se por aquelas imagens e ficou com
mais uma pergunta na cabeça: “Terão sido feitas com [câmaras] Leica?” Umas sim,
outras não. Mas esse número também não foi importante quando, no final do ano
passado, decidiu viajar para Portugal à procura de mais fotografias daquele
período para incluir na grande exposição do jubileu da Leica que está a
preparar para este ano. Em Lisboa, Koetzle, que foi director da revista da
Leica durante anos e que tem vasta obra publicada, confirmou o seu instinto
quando viu directamente as provas de alguns dos fotógrafos de Batalha de Sombras. Escolheu cerca de 30
imagens dos que usavam câmaras Leica e descobriu, maravilhado, o trabalho de um
amador muito dedicado à mítica marca alemã, Jorge Silva Araújo, de quem trazia
apenas uma pista, um artigo publicado na revista da Leica nos anos 50. Na
comemoração dos cem anos da invenção da câmara que revolucionou a fotografia e
a maneira como vemos o mundo através dela, Portugal será um dos países em
grande destaque.
Organizar uma exposição do jubileu da
Leica - talvez a câmara fotográfica mais emblemática de todas - é um enorme
desafio. Por onde começou?
Pelo
princípio, em 1914, ano em que Oskar Barnack construiu a sua primeira câmara.
Percebemos que a partir desta data o mundo da fotografia mudou. E
perguntámo-nos: “Por que não mostrar toda a história da fotografia do século XX
numa exposição? Por que não tentar mostrar como o sistema da Leica mudou a
maneira como vemos e compreendemos o mundo?” A coisa boa deste ponto de partida
é que é uma exposição verdadeiramente internacional. Imaginei como seria
fantástico emparelhar diferentes culturas, diferentes abordagens, diferentes
gerações, situações e momentos da história. A Leica foi uma câmara sempre
voltada para captar a história, as pessoas e a vida. Não é uma câmara de
estúdio. É para sair à rua e captar a vida. E a ideia é juntar tudo isto. Claro
que fiz uma lista daquilo que considero interessante. E para lhe dar um exemplo
que consta nessa relação, há vários fotógrafos portugueses. Fiquei
impressionado com uma exposição que vi em Cuenca [Batalha de Sombras, PHotoEspaña 2010]. Aquelas imagens foram uma
revelação para mim, fiquei com um excelente catálogo dessa exposição e fiquei
sempre a pensar: “Podem ser Leica. Podem ser Leica.” Contactei a curadora
[Emília Tavares] e pedi-lhe ajuda para confirmar esse pormenor. Ela acedeu e
entre mais de uma dezena de fotógrafos representados, pelo menos cinco usaram
Leicas. Isto quer dizer que vamos ter a fotografia portuguesa na exposição,
particularmente a dos anos 1950 e 1960, que foram décadas muito fortes. Hoje
também é forte, mas fiquei impressionado com a qualidade do que foi feito
naquelas duas décadas. Fiquei espantado também ao perceber como, no centro da
Europa, sabíamos tão pouco acerca deste nicho. Acho que a exposição do jubileu
da Leica será uma extraordinária oportunidade para dar conhecer um grupo de
fotógrafos portugueses com um enorme talento. Haverá também espanhóis,
italianos… mas os portugueses serão importantes, dado o desconhecimento quase
total da sua obra internacionalmente. Não sabíamos nada sobre eles e serão uma
parte importante da exposição que se inaugurará em Hamburgo. Já fiz parte da
selecção das imagens. Temos fotografias maravilhosas. E, com a ajuda da Emília,
descobrimos material novo do fotógrafo Jorge Silva Araújo. Abrimos envelopes
que estavam intocados e o que descobrimos é muito bom. Ele era um mestre a
imprimir, as provas são incríveis e apesar de ser amador via-se que adorava o
que fazia na fotografia. Verificamos que estava muito bem informado sobre os
melhores livros e revistas de fotografia da época e também quis deixar o seu
contributo.
E de que época são essas fotografias?
As melhores
são dos anos 1950. Também vimos imagens dos anos 1960, mas as melhores são dos anos
50. Também teremos fotografia contemporânea, com fotografias de Paulo Nozolino.
Que dimensão terá a exposição em
termos de imagens?
Teremos entre
400 a 500 fotografias. Vamos começar em 1914, porque Oskar Barnack começou logo
a fotografar com a sua primeira câmara. Atravessaremos todo o século e haverá
secções de países como Portugal. Haverá cerca de 30 obras de fotógrafos
portugueses. Teremos cerca de cem autores de todo o mundo. Mas não me preocupei
com proporções geográficas.
Por
abordagens estéticas. Por exemplo, depois da II Guerra houve fotografia
humanista em França, fotografia neo-realista na Itália, novo subjectivismo na
Alemanha e uma fotografia próxima da tradição humanista francesa em Portugal. E
a mesma coisa em Espanha. Isto dá uma mistura de diferentes estéticas em
geografias diferentes. Teremos obviamente o fotojornalismo antes e depois da II
Guerra. O período vanguardista. As agências de fotografia dos anos 1950. A
cultura dos fotolivros. A cor dos anos 1970 e 1980. A moda. E a fotografia
contemporânea. São cerca de 14 “capítulos”, onde caberá também o cinema.
Qual foi a principal revolução que a câmara
Leica trouxe à fotografia?
A primeira
câmara foi idealizada em 1914, mas com a I Grande Guerra não foi possível
produzi-la. E só 1925 é que a primeira Leica foi lançada no mercado. Era
pequena, muito mais pequena do que as câmaras que existiam. A maior parte dos
fotojornalistas usavam câmaras com negativos de vidro. Depois de disparar
tinham de mudar o negativo – não havia momento decisivo. A Leica era rápida e
tinha 36 imagens disponíveis. Funcionava como uma extensão dos braços e era
possível tê-la sempre à mão para disparar a qualquer momento, um pouco à
semelhança do que se faz hoje com os smartphones.
A Leica não foi a primeira a usar filme de 35mm. Mas a grande diferença é que
pela primeira vez uma empresa foi capaz de fazer uma câmara que era um produto
perfeito. A empresa tinha uma grande experiência na óptica porque nasceu da
Leitz, que fazia microscópios. O fabrico destes instrumentos tinha de ser
muito, muito preciso. Um saber que foi levado para esta pequena câmara
fotográfica, expoente máximo da tecnologia. A lente era perfeita, o negativo era
maior, as funcionalidades eram muito precisas. Adaptava-se bem às mãos, podia
segurar-se sem se tremer. E foi feita para capturar a curta distância. Com a
Leica, toda a maneira de capturar o mundo mudou. Os fotógrafos tornaram-se mais
rápidos, mais próximos do sujeito e puderam trabalhar em sequências de 36
elementos – se perdessem um momento decisivo, podiam rapidamente procurar
outro, e outro, e outro. Começou a ser possível experimentar.
Quer dizer que a principal vantagem da
Leica “se resumia” à eficácia com que respondeu a uma cultura fotográfica que
pedia outras ferramentas…
Sim, era um objecto extraordinariamente bem desenhado.
Quando se fala no nascimento desta câmara, é preciso não esquecer que se vivia
no tempo da Bauhaus, que se regia segundo o princípio “menos é mais”. E foi
isso que Oskar Barnack fez. Ele não era membro da Bauhaus, mas tinha o espírito
de fazer algo que utilizasse o mínimo daquilo que era necessário e nada mais.
Este espírito resultou num objecto tão purista, tão bem desenhado que fez com
que durasse até hoje. A Leica é como a Porsche – é sempre a mesma, apenas com
algumas mudanças. Mas o mais importante é que dentro de um objecto muito bem
desenhado temos uma câmara que funciona muito bem e que é capaz de captar o
mundo nas suas mais diversas variantes. 1925, foi o ano em que Eseinstein
estreou O Couraçado de Potemkin, na
cidade de Mannheim surgiram exposições de fotografia com abordagens documentais
diferentes, a nova objectividade. Foi um ano rico visualmente e Oskar Barnack
respondeu com o lançamento da Leica. Claro que os fotógrafos profissionais
tiveram alguma resistência. Achavam as Leica parecidas com camaras de brincar.
Mas os amadores começaram a descobrir as suas virtudes. Houve grandes nomes que
se aliaram desde cedo a ela – Henri Cartier-Bresson, Alexsandr Rodchenko,
László Moholy-Nagy e muitos artistas de vanguarda. Havia outro pormenor que
impressionava – um dos olhos podia controlar sempre o que se passava à volta e
quando surgia o momento… click!
Mas o que trouxe de
realmente novo?
Foi sobretudo
a possibilidade de encarar a reportagem de outra forma - através de múltiplas
imagens e não de uma. Surgiu uma nova maneira de contar uma história, em
sequência, de uma forma muito mais… cinematográfica. Muitos amadores – ou,
digamos, fotógrafos que vieram de outras profissões – ficaram encantados com
esta abordagem. No centro da Europa havia gente muito bem treinada a olhar nos
anos 1920, 1930. Um dos exemplos mais famosos é de Erich Salomon que era
advogado. Fotografava com uma Ermanox com pequenos negativos de vidro, que
tinha uma boa óptica. Salomon fotografava no tribunal durante os processos mas
tinha de o fazer sem ser notado. O que quer dizer que tinha de ir
constantemente à casa-de-banho para trocar os negativos de vidro da sua
máquina, tarefa pouco prática. Mudou para a Leica em 1932 e começou a oferecer
às revistas ilustradas da época, como a alemã Berliner Illustrirte Zeitung ou a francesa Vu, reportagens fotográficas completas – uma nova maneira de fazer
as coisas. Na altura havia bons directores de arte nas revistas, como o
Alexander Liberman, na Vu. Salomon
fotografava à noite, festas, eventos sociais. Mas talvez um dos mais famosos a
fotografar com Leica tenha sido Robert Capa que com o David Seymour “Chim” e
Gerda Taro cobriram a Guerra Civil Espanhola. Muitos dizem que esta foi a
primeira guerra onde os fotógrafos mostraram exactamente o que se estava a
passar, o primeiro conflito onde os fotógrafos estiveram sempre muito perto dos
acontecimentos. Antes, os fotógrafos apanhavam apenas o que restava das
batalhas, a destruição, pessoas mortas, bombardeamentos. Mas não estavam
presentes quando a batalha se desenrolava.
Muitas vezes,
a forma de trabalhar com Leica fazia com que as fotografias não saíssem
perfeitas, ficavam desfocadas. Mas isso dava-lhes autenticidade, dinâmica. Há um
bom exemplo de como este drama se mostra com uma fotografia de 1932 que Capa
tirou numa conferência política no momento em que um jornalista resiste a uma
ordem de prisão. Esse registo está completamente desfocado e quase não se
percebe nada na imagem, mas ao mesmo tempo é estranho, tem muita dinâmica e
capta todo o drama do momento. A Leica introduziu uma maneira completamente
diferente de ver o mundo.
É o momento em que a fotografia deixou
de estar congelada?
Completamente.
Deixou de estar congelada, deixou de ser apenas encenada. Passou a haver vida
na fotografia de uma forma mais… natural. Já havia fotógrafos a tentar trazer
esta nova forma de estar na fotografia e a Leica deu-lhes a ferramenta
perfeita. Trabalhava bem, era silenciosa, não precisava de flash. Foi importante para fotografar em locais onde era preciso
ter estas armas – em tribunais, em igrejas, em cafés e bares nocturnos.
E a Leica tornou-se famosa
imediatamente?
Não. Em 1925
não houve grande reacção. Nesse ano produziram-se cerca de 1000 câmaras. O
sucesso veio em 1927-1928. Pessoas como Rodchenko, artistas da Bauhaus
começaram a usá-la. Gisele Freund foi outra das famosas a usá-la. Quando
escapou aos nazis, em 1933, foi para França, onde trabalhou como fotógrafa. Há
uma história muito conhecida que mostra como levou algum tempo o
reconhecimento. Freund teve um trabalho que implicava fazer fotografias na
Biblioteca Nacional de França. Quando a conheceu, o director perguntou-lhe: “O
que é isso?” Ela: “É a minha câmara.” Ele: “Não! Não! Precisamos de alguém
profissional!” Ela foi a uma feira da ladra, comprou uma máquina de fole antiga
com um tripé e escondeu a Leica lá dentro. Disseram-lhe então que com aquela
máquina já podia fotografar. Freund tirou as fotografias com a Leica escondida.
É possível identificar um “estilo
Leica” na fotografia?
Sim.
Para se
fotografar com Leica é preciso estar próximo do objecto. Não são câmaras para
captar a grandes distâncias. Se se olhar para uma imagem com Roleiflex, por
exemplo, elas são muito compostas a partir do centro, muito simétricas. As
primeiras imagens do Henri Cartier-Bresson feitas com uma câmara 6x6 são um
pouco maçadoras. Com a Leica há dinâmica, há diferentes perspectivas. A
fotografia na Leica é definida pelos limites do fotograma. Tive uma experiência
estranha há uns tempos quando estava a folhear uma revista Vu. Deparei-me com uma fotografia em dupla página sobre a Guerra
Civil de Espanha e pensei “É espantosa! Tem de ser uma imagem feita com Leica.
Está tão perto, no chão, via-se uma cabeça, um ombro.” Fui à procura do crédito
e não encontrei logo. Mas depois lá o descobri: era uma imagem do Henri
Cartier-Bresson. Quando fiz a pesquisa para esta exposição, vi uns dez mil
fotolivros. Sentava-me todas as noites e o exercício principal era perceber se
aquelas fotografias tinham sido feitas com Leica. Na exposição haverá muitos
nomes que não são nada familiares. Não haverá apenas os cartier-bressons.
Encontrou algum trabalho desconhecido
internacionalmente que o tenha deslumbrado particularmente?
Sim, muitos.
Em particular o de um fotógrafo que se chama Richard Fleishhut. Tirava
fotografias em barcos a pessoas famosas. Em Setembro de 1939, Fleishhut estava
no SS Columbus perto do porto de Santa Cruz, América Latina. A II Guerra
Mundial começou e os ingleses fecharam o porto e a navegação no Atlântico ficou
muito controlada. O comandante tentou fugir durante dois meses mas não conseguiu.
Até que os alemães decidiram afundar o navio. Todas as pessoas abandonaram o SS Columbus em pequenos barcos e depois
assistiu-se a uma explosão. Ele fotografou todos estes acontecimentos com uma
Leica, uma história impossível de captar com uma câmara de negativos de vidro.
Aqui temos de tudo: a espera, o drama, o movimento, a atrapalhação das pessoas
a entrar nos barcos, a explosão e o barco a afundar. Esta sequência é
extraordinária e nós vamos mostrá-la.
E o Silva Araújo? De que forma o
surpreendeu?
Sabe, no
artigo que encontrei dele numa revista da Leica dos anos 50, não fiquei muito
impressionado. Era um Portugal muito cliché… mas quando peguei nos negativos e
nas provas… aí sim, fiquei muito impressionado. Mas há outros exemplos que
ninguém conhece fora de Portugal, como o de Victor Palla. Como já disse, fiquei
muito impressionado com a exposição de Cuenca e soube, desde aí, que esse
momento iria ser o início do meu love
affair com a fotografia portuguesa. Foi por causa daquilo que vi que decidi
vir a Portugal. Para uma exposição com esta abrangência, não haveria muitos
comissários a viajar para um país por causa de 30 fotografias.
Pelos vistos, parece que valeu a pena
a viagem…
Absolutamente.
Quando vi as provas do Silva Araújo, tive a certeza de que a viagem valeu bem a
pena – é do melhor que existe. E por isso pedi à Emília para fazer alguma
investigação para um texto do catálogo. O trabalho de Silva Araújo constará
deste livro que terá cerca de 400 páginas. Será um livro de referência em
relação ao trabalho fotográfico feito com Leicas.
Há algum país onde se consiga isolar
um culto particular em relação à Leica?
Em França,
sobretudo por causa da tradição de Cartier-Bresson. Na Rússia, por causa da
obra de Rodchenko. Mas o melhor elogio que se pode fazer a uma câmara é
copiá-la imediatamente e os russos copiaram-na. E no Japão também, um país onde
a marca também é muito forte. Temos obviamente os EUA com o trabalho de Alfred
Eisenstaedt, a revista Life e toda a
tradição de fotografia de rua dos anos 60, com Garry Winogrand, Joel
Meyerowitz. Há também os fotógrafos da agência AP, que até aos anos 50 foram
obrigados a usar câmaras speedgraphic
que tinham um manuseamento muito mais lento e complicado.
Haverá muitas provas vintage na
exposição?
Sim,
procurámos ter o maior número de provas vintage.
Mas é impossível ter de todos. De Erich Solomon, por exemplo, que foi morto em
Auschwitz, o que resta do seu trabalho são cerca de cinco mil negativos.
Tivemos de fazer provas novas. De qualquer forma, o que viermos a mostrar será
sempre através da melhor impressão possível. Haverá revistas, fotolivros,
filmes dos anos 20… Estou a pensar também montar uma sala sem qualquer elemento
visual onde se oiça apenas o click da
Leica. Este pormenor é muito importante nestas câmaras. Os técnicos da marca
conseguem perceber imediatamente se está a funcionar bem colocando o ouvido
perto da camara e carregando no disparador.
O som minimal das Leica quase podia
estar patenteado…
É verdade. Só
o som representa uma parte da relação de amor com a marca. Há poucos objectos
no mundo que atraiam tanto amor apenas por causa de um pormenor como este.
Talvez seja por causa do nome também: Leica vem de Leitz e de camera. É fantástico. É feminino e de
alguma maneira sexy. Os corpos das
câmaras foram sempre curvos, suaves, adaptam-se perfeitamente às mãos. A
Contax, por exemplo, já não era assim. Era rude, pesada. E depois há tantos
fotógrafos que fizeram auto-retratos com elas. O Silva Araújo também tem um.
Muitas vezes há espelhos e eles mostram-se orgulhosos de tê-la nas mãos. Outras
vezes, há jogos para a tentar escondê-la. A exposição também atravessa estes
aspectos, onde a emoção e a performance aparecem.
À imagem do que aconteceu com estes
fotógrafos portugueses dos anos 50, que têm sido alvo de uma atenção especial
nos últimos anos, acredita que ainda há muito para descobrir (ou redescobir) na
fotografia de meados do século XX?
Sim, com
certeza. Estamos só no princípio.
Na pesquisa para esta exposição ficou
surpreendido com alguma história relacionada com a Leica?
(silêncio)
Bem, um dos aspectos que mais me impressionou tem a ver com a própria história
da marca. Sobretudo aquele que diz respeito ao período em que vigorou o
fascismo no Alemanha. A propósito deste assunto li um livro de um rabi judeu
radicado em Londres, Frank Dabba Smith, sobre o perfil da família Leitz que era
muito honesta e contra o sistema vigente. Ajudaram muitos técnicos judeus da
empresa a sair da Alemanha. Este aspecto deixou-me particularmente feliz. Mesmo
antes da guerra, a família Leitz tinha um grande compromisso social. A maneira
como trabalhavam e como tratavam os trabalhadores é extraordinária. É uma lição
que podemos receber ainda hoje. Mostra que, afinal, nem tudo se resume ao
capitalismo e a ganhar dinheiro. O fundamental é tratar bem os trabalhadores.
Hoje, chamam-lhes “recursos humanos”, mas ninguém sabe muito bem o que
significa isto. Ernest Leitz introduziu a segurança social, construiu casas. E
quando a grande crise surgiu em 1924 a razão para lançar definitivamente a
Leica foi manter os trabalhadores. Não foi porque tivesse um interesse
particular na fotografia. O que se quis foi manter entre três e cinco mil
trabalhadores. Quiseram mantê-los. É desse espírito de empreendedorismo que
precisamos hoje. Na altura, era muito mais fácil fechar a fábrica e pôr toda a
gente na rua. Era o que a economia lhe dizia. Mas houve uma reacção contrária,
uma ideia de como seguir em frente lançando um novo produto, uma nova
ferramenta para fazer alguma coisa de uma maneira que nunca tinha sido feita.
A agência Magnum e a Leica sempre
mantiveram uma relação muito próxima. De que forma o ensaio e o fotojornalismo
foram influenciados por este percurso lado a lado?
A Magnum
trouxe algumas coisas novas ao fotojornalismo – a primeira das quais foi
cooperativismo, o trabalho em conjunto. Depois houve toda a ideia da
resistência dos membros fundadores, e lado humanista – não eram simplesmente paparazzi. Eram esquerdistas,
revolucionários tinham uma ideia do que era informar pela imagem. Mas era algo
mais do que informar – havia um sentido estético ligado à imagem em tudo o que
faziam. É por isso que vemos hoje fotografias da Magnum em tudo quanto é
museus, não é apenas fotojornalismo. Há sempre algo mais, a começar pela
fotografia The Falling Soldier de
Robert Capa, que é extraordinária. Todo o corpo de trabalho Henri
Cartier-Bresson, o trabalho de “Chim” e dos que vieram depois: René Burri,
Werner Bischof… Todos contribuíram para um ideal de fotografia de informação
combinada com uma postura e estilos pessoais. E isso é o mais emblemático.
Mas acha que a Leica ajudou a chegar a
esta abordagem?
Quase todos
tinham este instrumento para contar estórias, o que ajudou a formar uma maneira
específica de mostrar a realidade. É um pouco como o Bob Dylan e a guitarra
acústica - é um par que casa na perfeição.
Dentro da Magnum, Henri
Cartier-Bresson é o nome mais sonante de uma relação entre fotógrafo e o seu
equipamento que se pode chamar apaixonada. Será um dos protagonistas do jubileu?
Não muito
porque o trabalho dele já é muito conhecido. Para mim, em Cartier-Bresson o
interessante é que é o primeiro a dizer que com aquela câmara se podia fazer
algo parecido com arte. Importa sublinhar também que o seu livro Images a la Sauvette, que saiu em 1952,
teve um enorme impacto junto de outros fotógrafos, incluindo os portugueses.
Vou usar Cartier-Bresson como ponto de partida para outras coisas que
aconteceram e nada mais.
Há algum outro fotógrafo que gostasse
de nomear como exemplo de uma relação tão apaixonada com a sua câmara?
Bruce
Davidson, cujo trabalho sobre a comunidade negra nos EUA nos anos 1960
representou um marco importante. É o tipo de projecto a longo prazo que tem um
grande peso. Não é só ir ao Alabama fotografar o Martin Luther King e vir
embora. Davidson fotografou aquela comunidade durante anos e anos. René Burri
fotografou os alemães durante 20 anos. Bruno Barbi os italianos. Robert Frank
os americanos. Sergio Larrain a América Latina… Todos estes projectos a longo
termo formam uma cultura de imagem diferente. Não era só tirar uma boa
fotografia e ir embora. Era preciso seguir alguma coisa para o resto da vida.
Há ainda a Nicarágua captada por Susan Meiselas. Anders Petersen, no Café Lehmitz. Christer Strömholm, em
Paris, Ed van der Elsken… todos com Leica, com uma relação forte com aquilo que
faziam. Strömholm contou-me que antes de começar a fotografar nos bares de
travestis de Paris, chegava lá e punha a câmara em cima do balcão sem fazer mais
nada. Durante dias fez a mesma coisa até que lhe perguntaram “O que é isso?” “É
a minha câmara.” “E não quer fazer fotografias?” “Sim, se me deixarem.” Foi
como entrar numa jaula de tigres com toda a gentileza. Strömholm manteve
contacto com aquelas pessoas para o resto da vida.
A Leica conseguirá manter-se num mundo
fotográfico cada vez mais desmaterializado e digital?
Desde que
esteja empenhada na fotografia estaremos a salvo. Não é um produto de massas,
mas tem a procura suficiente para continuar a manter este sistema vivo.
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