15 agosto, 2013

para Arles

Pieter Hugo, da série There´s a Place in Hell for Me and My Friends, cortesia Galeria Michael Stevenson


O que é que andamos a fazer com o preto e branco?
(Sérgio B. Gomes, em Arles, ípsilon, 9.08.2013)

Um festival de fotografia que em 2013 anuncia a celebração do preto e branco corre o risco de ser logo confundido com a brigada do reumático dos processos analógicos. Um cartaz que diz “Arles in Black” - que serve de cartão-de-visita à edição deste ano dos Encontros de Fotografia  de Arles, França - pode ser meio caminho andado para uma leitura imediatista que pode ligar aquele que é um dos mais importantes conclaves da fotografia no mundo à resistência à mudança ou à perpetuação dos exercícios saudosistas, a chorar banha e ranho pelo que foi e não volta a ser. Ao ancorar hoje o grosso da programação numa estética que marcou (e ainda marca?) de forma tão profunda o labor fotográfico, Arles não quis fazer apenas uma provocação – quis dar-nos um estado da arte deste universo para, através dele, mostrar como ainda se podem fazer descobertas e revelações. E, sobretudo, tentar provar como ainda fervilha a centelha criativa dos que escolhem exprimir-se através das gradações de cinzentos.
A velocidade alucinante a que tem caminhado tudo o que diz respeito à fotografia nos últimos anos tende a fazer-nos esquecer boa parte do que existia antes. Ou a deixar cada vez menos espaço para o entendimento do percurso e da história das múltiplas formas de expressão da imagem fotográfica. Mas se pensarmos bem, não estão assim tão distantes as décadas em que o preto e branco analógico dominava a fotografia como os dinossauros reinavam sobre a Terra, sem criaturas que lhe pudessem fazer frente. Até que surgiu um primeiro tremor de terra chamado cor. E depois outro chamado digital. Ora, sempre que abalos com esta dimensão se fazem sentir importa ir percebendo pontualmente que brechas foram abertas e que consequências deixaram.
Este festival (com mais de 50 exposições abertas até 22 de Setembro) pode servir para perceber se o preto e branco (analógico ou não) é um dinossauro em perigo de extinção, se é uma prática que entrou em estado de obsolescência, se deixou de nos surpreender, de nos seduzir e abalar. Será também um momento oportuno para tentar encontrar respostas não só para as perguntas lançadas pelos Encontros (“Que lugar ocupa hoje o preto e branco?”; “Realismo ou ficção, poesia, abstracção ou pura nostalgia?”) como para outras questões que podem ser colocadas: será produtivo (possível) discutir a este nível qualquer estética ou expressão fotográfica?; o preto e branco foi “a” fotografia durante muitas décadas, resistiu a inúmeros embates – fará sentido falar no seu desaparecimento puro e simples?
O actual director do festival François Hébel é um protagonista privilegiado para nos conduzir por estas reflexões. Com uma ligação à fotografia que remonta a 1979, quando começou a escrever para a revista Contact, publicada pela cadeia de lojas FNAC, foi ele que organizou as primeiras exposições de fotografia a cores de grande formato no Festival de Arles, em 1986, provocando um sentimento de rejeição no seio do núcleo duro (muito conservador) dos encontros que acontecem todos os anos desde 1970. Depois de mais de uma década como responsável máximo pela cooperativa Magnum em Paris (um dos templos do preto e branco), em 2002 assumiu de novo a liderança do festival, cargo que ocupa até hoje.
Agora, numa nova tentativa de fazer mexer as águas (mas agora ao contrário), Hébel assume algum “radicalismo” (é a palavra mais repetida do seu curto texto de apresentação dos Encontros) ao escolher um olhar sobre o preto e branco, programa que pode ser entendido como “paradoxal” já que assenta num “espírito de descoberta”. Descoberta? Sim, como se o preto e branco já fosse coisa de um passado muito longínquo. E assim encontrar (reencontrar) “verdadeiras pérolas”: como a retrospectiva (em estreia mundial) de um fotógrafo tão secreto quanto genial como o chileno Sergio Larrain (1931-2012); alguns dos primeiros trabalhos nunca mostrados em público do francês Guy Bourdin (1928-1991), descobertos numa caixa de cartão e meticulosamente separados em envelopes pardos; ou o olhar cirúrgico do britânico John Stezaker que com um laborioso corta e cola sobre fotografias encontradas e objectos gráficos nos oferece novas possibilidades para a leitura de todo o tipo de imagens.
Descoberta? Sim, ao revelar “criações inéditas de artistas consagrados”: como as paisagens marítimas nocturnas (a roçar a abstracção) do japonês Hiroshi Sugimoto (1948); ou um raro olhar a negro dos campos de lavanda da Provença e das artes que lhes estão associadas pela lente do português Paulo Nozolino (1955).
Descoberta? Sim, ao recuperar “tesouros do passado”: como as fotografias captadas com o intuito de integrar álbuns de família como as que Jacques Henri Lartigue (1894-1986) tirou à sua primeira mulher, a mais do que amada “Bibi”; ou as que Pierre Jamet (1910-2000) foi tirando no decorrer de grandes caminhadas no momento em que as pousadas de juventude conheceram em França uma grande dinâmica. Ainda no campo dos“tesouros”, daqueles que existem lá em casa, há aquela que é uma das melhores exposições da edição deste ano, Album Beauty, pensada pelo holandês Erik Kessels a partir da sua colecção, que nos transporta para dentro dos álbuns de família vernaculares, numa reflexão perspicaz sobre a morte acelerada deste universo fotográfico.

Maiorias, minorias
As excepções à “regra do preto e branco” dos Encontros de 2013 são mais do que muitas e se por um lado servem para fazer um simples contraponto visual à profusão de negros (como se as cores da Provença não fossem suficientes…) por outro revelam-se uma opção acertada quando é preciso recentrar o olhar no que é produção contemporânea dominante de modo a poder estabelecer relações (mais ou menos próximas) ou distâncias (mais ou menos inultrapassáveis). No caso das polaróides com estudos de cor (que também serviram para fazer caríssimos e exclusivos lenços Hermès) das alvoradas de Tóquio captadas por Sugimoto é possível perceber como o fotógrafo japonês explora o mesmo tema (a luz e as suas variações no tempo) independentemente do formato, da forma ou do suporte fotográfico utilizados. Ainda do lado das relações é interessante comparar os primeiros passos na fotografia de moda de Guy Bourdin (ainda a preto e branco, que a exposição Untouched também mostra) com as actuais criações da holandesa Viviane Sassen (colaboradora habitual de revistas alternativas como a Numero, Roxane ou Pop). Os dois revelam uma queda para as imagens desconcertantes a tocar o surrealismo. Já o Novo Mundo, a exposição apresentado por Wolfgang Tillmans (1968), desperta-nos para a anarquia e para a embriaguez de imagens saturadas de marcas e cores que estão muito longe do “romantismo” com que tendemos a olhar para as fotografias a preto e branco. É uma exposição que funciona como uma picadela de agulha, capaz de nos acordar do encantamento do canto das cigarras que por esta época enxameiam Arles. E que provoca um estremecimento depois do doce embalar dos matizes cinza que povoam a maioria das exposições do Parc des Ateliers, um enorme conjunto industrial ferroviário para onde está projectada uma obra de Frank Gehry dedicada ao estudo e à promoção da fotografia.
Fora do programa oficial mas mais do que dentro do espírito “a preto e branco” que pauta estes Encontros importa destacar mais duas exposições consagradas a dois mestres: Gordon Parks (1912-2006) e Daido Moriyama (1938). A longa carreira dedicada à fotografia do primeiro (que entre outros afazeres foi realizador de cinema, músico e escritor) é objecto de uma síntese que percorre os vários géneros de uma obra pioneira e a vários títulos excepcional. Parks foi o primeiro de muitas coisas na fotografia, no jornalismo e no cinema, mas o que marca a sua obra (frontalmente engajada com a luta contra todas as formas de discriminação a começar pelo racismo) é uma extraordinária sensibilidade para captar momentos intensos, quer se trate do retrato de uma empregada de limpeza (Ella Watson, na célebre American Gothic, 1942) ou de uma estrela de cinema (Ingrid Bergman na ilha de Stromboli, 1949). A exposição Une Histoire Américaine (a primeira consagrada ao fotógrafo em França) traça um percurso cronológico pela obra fotográfica do realizador de Shaft (1971), onde assumem especial protagonismo as imagens dos líderes que lutaram pelos direitos da comunidade afro-americana no pós-guerra, entre os quais Malcolm X e Martin Luther King. As fotografias de moda, outra das grandes paixões de Parks que trabalhou para a Vogue vários anos, são outro dos pontos altos de uma mostra que brilha também pelas soluções de montagem meticulosas e criativas na escuridão de uma das naves do Parc des Ateliers.
Mesmo ali ao lado, numa nave paralela, a mesma bitola de qualidade expositiva agora aplicada a Labyrinth + Monochrome, de Daido Moriyama. Coincidência, ou talvez não, as duas mostras que melhor souberam tirar partidos da arquitectura de montagem foram organizadas pela Association du Méjan, responsável pela editora Actes Sud, com sede em Arles, chancela de muitos fotolivros que todos os anos saem dos Encontros de fotografia.
A instalação fotográfica de Moriyama é um amplo abraço a quem nela entra. E um mergulho caleidoscópico pelo trabalho de um dos mais importantes fotógrafos vivos, responsável pela formação de uma atitude vanguardista no Japão do pós-guerra que influenciaria gerações de fotógrafos por todo mundo. Um longo muro circular coberto de imagens iguais (parecidas? diferentes?) de pernas entrelaçadas com meias rendadas suporta grandes painéis com folhas de contacto de duas séries distintas. Em Monochrome viajamos para as ruas de Tóquio, num fluxo de imagens taciturno e denso, a marca de água da obra de Daido Moriyama. Em Labyrinth, o mestre japonês joga com a disposição de fotogramas de todo o tipo e de diferentes épocas do seu percurso, inventando sequências e falsas narrativas num desafio à percepção e à capacidade de distinção entre o verdadeiro e o falso. O objectivo é também fazer estremecer o cânone fotográfico segundo o qual as obras-primas estão confinadas a uma única imagem.
Quem não está confinado a uma única imagem são as centenas de fotolivros que todos os anos chegam aos encontros na expectativa de levar o título de livro de fotografia do ano. Entre as obras que chegaram às mesas do Atelier de la Chaudronnerie, ainda no meio do calor abafado das imensas naves do Parc des Ateliers, havia pelo menos seis  títulos editados em Portugal: Rien (Pierre von Kleist), de André Cepeda, Blue Mud Swamp (ed. Pente 10 Gallery & Filipe Casaca), de Filipe Casaca, Lapa do Lobo (Fundação Lapa do Lobo), vários autores, The Time Machine (ed. The Moth House), de Edgar Martins, Couve e Coragem (ed. autor), de Lioba Keuck, e Bad Liver and Broken Heart (ed. Ghost), de São Trindade. O prémio Livro de Autor do Ano foi atribuído a Anticorps (ed. Editions Xavier Barral), do francês Antoine d`Agata, e o Prémio do Livro Histórico a AOI [COD. 19.I.I.43] – AZ7 [S/COD.23] (ed. autor), da brasileira Rosângela Rennó. O primeiro reúne parte de uma obra autobiográfica singular em torno das errâncias de um corpo que se move nos excessos, na noite e na vertigem da alienação total. O segundo recupera o que resta de um conjunto de álbuns fotográficos depositados num arquivo do Rio de Janeiro. E revela páginas desses álbuns sem nada, com o vazio que foi deixado pelos larápios que ao longo de anos foram cortando páginas e surripiando imagens de paisagens do Brasil.
Depois de uma passagem por todas as mesas onde pousam centenas de fotolivros, é possível arriscar que, pelo menos na produção gráfica, a cor domina (com uma margem confortável) o que não é propriamente uma novidade nos dias que correm. Mas também é possível dizer que a minoria ligada ao preto e branco (sem contar com os livros de história da fotografia) não está propriamente sentada em cima de uma vaca sagrada, o que significa que tem encontrado novos limites, novas formas de explorar o potencial gráfico e imagético de uma estética que perdura.

E essa dinâmica na produção fotográfica contemporânea - que já deixou de ser uma resistência contra o que quer que seja – também vai fazendo o seu caminho. O que quer dizer que o cisne do cartaz dos Encontros da edição deste ano, da autoria de Michel Bouvet, ainda não apareceu para entoar o seu canto fúnebre. Pelo menos desta vez.


Sergio Larraín, rua principal de Corleone, Sicília, Itália, 1959, Magnum Photos

1 comentário:

Eva disse...

Esta fotografia é linda!! Parabéns :) Mesmo!

 
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