23 abril, 2013

do arquivo

Jorge Guerra, Feira da Ladra, 1966
© Jorge Guerra

Os arquivos têm tendência para assustar. Remetem para mofo, escuridão e catalogação burocrática. Carregam o peso de um território sacro e inacessível e talvez por isso incutem-nos o preconceito de que estão mais fadados para esconder do que para mostrar. Na verdade, os arquivos são guardas - guardam-nos e preservam-nos a memória. E têm o dever de nos a revelar de forma viva, não só quando a procuramos, mas sobretudo quando é preciso tornar a ver a genealogia das coisas ou quando é preciso redescobrir a natureza dos suportes e o potencial criativo que carregam.

Na exposição Imagem entre Imagens, comissariada por José Luís Neto e Sofia Castro, patente até 1 de Junho no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, revolveu-se a colecção do arquivo para procurar diálogos entre imagens que fizessem ao mesmo tempo uma pequena viagem pela história das linguagens, materiais e géneros fotográficos.

Tentando fugir à mera recuperação da memória visual arquivada de estrelas da fotografia nacional e internacional, optou-se por um critério de selecção que passa pelo potencial de deslumbramento de cada peça enquanto objecto singular e a sua capacidade de estabelecer parentescos, criar cumplicidades ou até provocar conflitos.

Um exercício com estas características remete o cunho autoral de cada imagem para segundas núpcias e dá a quem escolhe uma rara liberdade de intrometer a fotografia anónima na história, baralhando o cânone. E essa é talvez a maior força de Imagem entre Imagens, que coloca Walker Evans no meio de dois fotógrafos não identificados pelo puro prazer de estabelecer com o mestre norte-americano cumplicidades inusitadas de origens desconhecidas.

"Partindo do princípio de que uma "imagem conduz a outra imagem", criou-se uma sequência em que a singularidade de cada fotografia sugere a outra, ainda que distanciadas no tempo, contexto e autoria, perspectivando a transversalidade da imagem como veículo de aproximação e diálogo entre imagens, processos fotográficos e autores", explica o texto de apresentação da exposição.

Tal como uma cinemateca deve mostrar os filmes mudos de F. W. Murnau de forma recorrente, um lugar que tem à sua guarda boa parte da nossa história visual fotográfica deve ter sempre lugar para um daguerreótipo (suporte fundador da fotografia), para uma albumina (processo muito popular no final do século XIX) ou para um cianótipo (processo que produz imagens azuladas). Haverá múltiplas formas de fazer esta revisitação, este regresso do passado. A estratégia de Neto-Castro nesta exposição procura o simples prazer pela imagem, misturando uma dose de rebeldia com outra de criatividade, lembrando-nos que os processos "antigos" podem não estar assim tão esgotados quanto a tecnologia actual nos leva a crer.

O fotograma solar (Myrtus communis) feito por Mariana Marote em 2011-12 utilizando papel de aguarela cianotipado é prova disso. E é também uma forma subtil (e hábil) de mostrar que os arquivos e as colecções que estão à sua guarda podem ser lugares mágicos, poéticos e deslumbrantes. Lugares que nos dão a possibilidade de perceber sempre que quisermos o caminho percorrido. Para saber como chegámos aqui.


Mariana Marote, Myrtus communis, 38º46 ´ 13.93 ´´N, 9º ´27.52 ´´W 2011-12
© Mariana Marote


Fotógrafo não identificado [paisagem rural], [1880-1910]

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