18 dezembro, 2012

o zumbido


Da série Meus, de Nuno Tavares

Estão escolhidos os vencedores do Prémio Novos Talentos FNAC Fotografia 2012 e Nuno Tavares é o grande vencedor com o trabalho Meus. Tiago Casanova, com Paisagem Híbrida,  e Francisco Mendes, com Abstinência. Peleja. Poder, ganharam menções honrosas. O júri que escolheu estes trabalhos foi constituído por António Pedro Ferreira (fotojornalista do Expresso); Augusto Brázio (fotógrafo e membro do colectivo kameraphoto); Mário Teixeira da Silva (diretor do Módulo – Centro Difusor de Arte) e Sérgio B. Gomes, escriba deste blogue. Os prémios vão ser entregues em Janeiro de 2013. Durante 12 meses, as exposições do vencedor e das  menções honrosas circularão pelas várias lojas da FNAC espalhadas pelo país. Eis o texto que escrevi sobre o trabalho vencedor:

Um dos desafios mais estimulantes para quem tem de isolar poucas dezenas de imagens no meio de uma floresta de imagens é detectar aquelas que nos provocam um zumbido. Aquelas que conseguem estabelecer um campo mínimo (consensual) de conceitos e ideias no meio de uma miríade de imagens que se espalham por cima de mesas e que esvoaçam na cabeça e no olhar de quem tem a responsabilidade da escolha.

Esta espécie de lapidação de um diamante em bruto (que são as centenas de trabalhos enviados) é um exercício pouco linear e resolve-se, por norma, através de inúmeras aproximações e outros tantos afastamentos, através de pequenas decisões espontâneas ditas em voz alta e que viajam depois por caminhos com muitas curvas e contracurvas – a discussão. É, necessariamente, um jogo táctico de gostos e de referentes, sobretudo em relação ao conteúdo, à forma e ao estilo.

Às vezes é o conjunto das imagens que nos desperta pela sua coerência e método, outras é a força de uma fotografia que nos espicaça e que nos alerta para tudo o resto como se estivesse revestida de um poder aglutinador, o tal zumbido que depois de darmos por ele não nos sai do ouvido. Creio que foi isso que se passou em relação à imagem de um tronco nu envolto em ferros pontiagudos e retorcidos – passou pelo olhar de todos e deixou logo um zumbido. Isolou-se. E foi isolada. Deixou uma marca, como aquelas que deixam uma mordiscadela leve. Incomodou-nos no bom sentido e guiou-nos o olhar para um trabalho carnal e fulgurante que tenta dar-nos consciência do espaço, que o abala, abrindo-lhe fendas, questionando a sua abstracção e a sua suposta neutralidade.

As fotografias com que Nuno Tavares ganhou o Prémio Novo Talento FNAC Fotografia 2012 parecem mais orgânicas do que outras, parecem feitas de mais matéria, têm mais músculo e talvez por isso nos tenham conseguido dar um soco mais potente do que outras ao ponto de ser impossível não reparar nelas enquanto se escalava a montanha da escolha dos vencedores. São fotografias que procuram a provocação e o desafio à medida do respirar, ora sustendo, ora libertando um grito, um esgar.

A força do que vemos nas imagens de Nuno Tavares não se esgota naquela poderosa representação de ecce homo emoldurado por cornucópias, nem nos espasmos ou na cristalização do movimento sem os pés assentes na terra. Os lugares são também peça fundamental porque surgem como uma partitura inclusiva da acção. No entanto, são os corpos que os atravessam (e que neles se enroscam) que nos dão o seu pulsar - o corpo captado de forma a mostrar-nos a geometria dos lugares (dos objectos ou do que resta deles), na sua vastidão, na sua força visual, no seu desastre e na sua decrepitude, território aliás muito escorregadio na fotografia, mas que aqui é resolvido com sabedoria e rasgo. O corpo utilizado de forma cénica, como uma flecha em direcção a um alvo difícil de definir, um alvo instável e inseguro que é o espaço em que nos movemos. Mais: há na escolha aleatória dos lugares fotografados uma inconstância que só é resolvida pela presença do humano, uma presença também ela de certo modo aleatória mas que resulta como principal trunfo do trabalho.

“Meus”, assim se chama o portfólio de Nuno Tavares, é um trabalho que ousa e isso, parecendo pouco, é muito. Ousa sobretudo na aposta pela deriva com que enfrenta os espaços, onde se instala com a expressão da teatralidade, do movimento da encenação e da fugacidade com que inevitavelmente vivemos os lugares. Ousa na opção por imagens que dificilmente se podem arrumar. Ousa também porque essas escolhas parecem mais próximas da fotografia enquanto exercício sensorial desgarrado, longe da fotografia enquanto exercício de composição meticulosa (familiar ou ilusoriamente familiar), porventura aquele com que confortavelmente mais temos tendência a identificar-nos.

Apesar de estar mais comprometido em revelar um universo pessoal, através de lugares devolutos que o cativam ou espaços e pessoas que são parte da sua memória, “Meus” acaba por se tornar também “nosso”. Esse ecce homo, principal responsável por nos ter despertado, a imagem do zumbido, afinal não é tanto um “Eis o Homem”, um “aqui está ele”, “apresento-o”. É mais o anfitrião, o homem que diz “eis-nos no nosso espaço”, “aqui estamos nós”, “somos assim e um dia fundir-nos-emos com a matéria”. Ou seja, a fotografia enquanto celebração da memória e do espaço mas também enquanto percepção da finitude.



Da série Meus, de Nuno Tavares

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