13 novembro, 2012

o original

 Exposição Utz,
© Vera Cortês Art Agency



O original fotográfico
(Nuno Crespo, ípsilon, Público, 12.10.2012)

O trabalho de Daniel Blaufuks (n. Lisboa, 1963) é, genericamente, sobre a memória. Não sobre a memória como conceito filosófico ou psicológico, mas sobre a memória como urgência e um inadiável gesto de redenção. Usando uma imagem de Benjamin, as imagens de Blaufuks são diques contra as marés do esquecimento no sentido em que guardam o que não se pode esquecer e, portanto, são sobre o inesquecível. Uma categoria que, neste contexto, diz respeito aos elementos que fazem a tessitura do visível e não designam um conjunto certo e limitado de facto, coisas e pessoas.

Sob o título Utz, uma evocação do último romance de Bruce Chatwin, reúnem-se quatro séries de trabalhos e cada um, a partir da sua diferença, alicerça-se sobre uma evocação, desta vez não de um facto preciso da história política, social ou de um indivíduo, mas da história da fotografia, o que é uma forma de dizer da história da visibilidade. Por um lado estes trabalhos convocam as antigas impressões fotográficas como a cianotipia, a estereoscopia, a polaroid, os filmes de 8mm e, por outro, lado as figuras primeiras e tutelares da fotografia: Talbot, Niepce e Man Ray. A evocação das formas antigas de fotografar não é uma questão retórica ou simplesmente estética, mas mostra como nas artes (e a fotografia é um caso exemplar desta situação) as transformações técnicas (por exemplo trocar a Kodak e a Polaroid pelas impressões nos dispositivos Epson) têm consequências no modo como se pensa e faz as imagens. Evocar os dispositivos antigos não é uma preferência pelo retro mais ou menos nostálgico, mas a afirmação de uma sensibilidade e modo de pensar específicos. As Sun pictures de Blaufuks não são sobre o filme: as grandes imagens azuis (no azul irresistível de Yves Klein) onde surgem como se fossem desenhos ou aparições, os filmes 8mm, luvas ou as tinas de revelação não são sobre a fotografia ou filme, mas são trabalhos acerca das condições de possibilidade de um dispositivo que, repita-se, é a história de uma sensibilidade e do modo como um dispositivo técnico não só construiu a visualidade, mas conquistou e formou uma sensibilidade.

A figura criada por Chatwin e evocada por Blaufuks relata um coleccionador de figuras de porcelana, cuja pertinência neste contexto não está no perfil psicológico do personagem do texto, mas no modo como em nome das suas figuras ele resiste contra as tentativas mais mortíferas e persecutórias do regime comunista, como se essas figuras fossem humanas e portadoras de mais vida que a própria vida. Esta figura serve ao fotógrafo como mote para mostrar como a matéria e a forma dos objectos materiais condensam não uma história da matéria, mas a história dos homens, dos seus afectos e dos seus gestos quotidianos. É nos pratos que usamos nas refeições quotidianas, nas mesas a que nos sentámos, nas janelas através das quais vimos a passagem dos dias, que a vida fica incrustada, é nessas coisas, aparentemente tão mudas e inexpressivas, que se guardam memórias, sensibilidade, experiências e, claro, a própria vida. E é nisto que a série “A primeira imagem” é tão clara. As suas polaroids, tão suavemente fixadas ao fundo por magnetos que parecem estar suspensas, não só repetem Niépce, mas formam uma espécie de diário doméstico do artista. Todas as 14 polaróides foram feitas na casa/estúdio do artista e nesta ficção do quotidiano o que é realçado é o modo único das coisas aparecerem e, por isso, as polaroids (a cuja fisicalidade e materialidade não se pode escapar) foram sujeitas a um processo que as torna únicas. Este fazer de cada fotografia um original (único e irrepetível), é não só negar a imitação técnica ad nauseam, mas, como escreve o artista no texto sobre a exposição, cristaliza a reivindicação da “aura” para as imagens fotográficas o que é uma forma de chamar a atenção para a experiência destas obras como coisa física, sensorial, e sublinhar que ver/experimentar uma fotografia não é ler uma imagem, descodificando os seus elementos e conseguindo construir uma narrativa ou completar uma legenda, mas é um acontecimento físico total que exige o face-a-face de dois corpos: o do espectador e o da obra fotográfica a qual não é só uma imagem, mas uma existência que, como diria Benjamin, devolve o olhar de quem olha para ela.

UTZ, de Daniel Blaufuks
Agência de Arte Vera Cortês
Av. 24 de Julho, 54, 1E, Lisboa
Até 16 de Novembro

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