14 outubro, 2012

Vieitez

Dorotea do Cará, Soutelo de Montes, 1960-61


 Virxilio Vieitez
 (revista 2, Público, 09.09.2012)



Já não me lembro bem como fui lá parar, mas deve ter sido durante uma daquelas correrias sôfregas para tudo querer ver. Toquei a campainha e subi uns lanços de escadas de madeira a ranger. Vinha de várias exposições festivaleiras seguidas, carregado de papelada, catálogos de capa dura com nomes importantes estampados. Abriram-me a porta, era o único, e vi aquelas caras, aqueles lugares em ampliações perfeitas, penduradas em paredes imaculadas. Uma galeria de artes. Preços altos. Uma galerista que se escondeu logo a teclar atrás de um monitor cromado.

Ver aquelas caras em Madrid, num bairro trendy, era estranho. Rostos dignos, com expressões duras, pendurados em paredes altas. Preços altos. Molduras perfeitas e vidros de museu. E lá dentro rostos de um mundo à parte, retratos de famílias no quinteiro, crianças com brinquedos e animais de estimação no regaço. Fatos domingueiros e quase sempre olhares envergonhados. Formato quadrado, composições perfeitas, onde vemos gente simples e lugares do antigamente, com terra batida e medas de palha.

Andei por ali meio perdido sem perceber o que estava a ver, sem conseguir calcular a força do que ali se mostrava. Pareceu-me tudo anacrónico, tudo fora do lugar, até o branco das paredes – afinal, as fotografias que estariam condenadas aos álbuns de família, com cantos de triângulo e posições oblíquas, tinham abandonado a sua vida privada, o seu sossego, para se aventurarem no frenético mundo da arte.

À segunda volta, a estranheza passou a deslumbramento e sei hoje que esse encontro com as fotografias de Virxilio Vieitez (Soutelo de Montes, Pontevedra, 1930-2008) reorientou o meu olhar e fez-me desistir de muitas coisas que procurava na fotografia (alguma grandiloquência, uns pozinhos de espectacularidade, uma ou outra artimanha, algum dramatismo…).
 

A obra de Vieitez, fotógrafo ambulante que bateu toda a Galiza, ganhou aura e reconhecimento talvez por representar um género de fotografia em estado puro que, no seu conjunto, deu origem a uma poderosa crónica humana que vai muito além do quadro de época, do levantamento etnográfico. Vi naquelas imagens uma inocência visual (se é que isto existe), que julgo contaminada apenas por uma intenção – a de registar – e de uma expectativa – ser pago por isso. Confirmei naquela tarde que a fotografia é o mais rebelde e complexo dos suportes da arte. E no fim, tirei um rebuçado do pratinho da recepção e não vi mais exposições. Não valeriam a pena.


Cerdedo, 1959-1960

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