Man Ray, Rayography |
Poder escolher
(Comecei uma crónica regular na revista 2 de domingo que aqui vou reproduzindo. 08.04.2012)
A impressão que dá é que ainda nem começámos a choramingar por ela quando, na verdade, já está em marcha o cortejo fúnebre. A fotografia analógica (e todos os rituais de produção e de criação que lhe estão associados) anda por aí como um morto-vivo a cavar sepulturas sem saber muito bem quando e onde será enterrada - é um ser moribundo que vai tendo os seus cantos de cisne nos noticiários à medida que vão sendo anunciados golpes de punhal num corpo já ferido.
Apesar de a certidão de óbito já ter sido declarada, a morte propriamente dita ainda não aconteceu. Talvez só agora, numa altura em que a rainha da festa fotográfica - a Kodak - está à beirinha de queimar os últimos cartuchos, tomemos consciência do fim desse casamento onde afinal sempre houve espaço para três - a óptica, a química e a mecânica.
Creio que nesta fase de agonia interessa pouco comparar virtudes e defeitos do que existia e do que existe. Trata-se de um exercício inócuo, para não dizer impossível de estabelecer - o abismo entre as práticas do digital e do analógico não são apenas distantes, em certos aspectos são antagónicos.
Será talvez o momento de tentar perceber o que deixaremos de ver e de fazer com o fim da película fotossensível e da revelação química. E isto tem pouco a ver com o romantismo saudosista da escuridão do laboratório ou com lágrimas vertidas "pelo que foi e que não volta a ser".
O exercício que Tacita Dean fez com Film, apresentado este ano na Tate Modern, em Londres, incita-nos a, pelo menos, pararmos para identificar algumas das coisas que dificilmente voltaremos a ver (ou criar) da mesma maneira. Isto apesar de sabermos que a artista inglesa é uma parte interessada no processo em si (a sua matéria-prima criativa está ligada aos suportes analógicos e à problemática do sua extinção). Dean lembra-nos (como se já fosse preciso lembrar-nos de coisas que ainda ontem aconteceram) o potencial plástico e a variedade de recursos que se podem associar à película para gritar: "Salvem o analógico!"
Menos comprometido e longe do fetichismo pelo suporte, Rui Poças, director de fotografia de Tabu, rodado em película a preto e branco, apontou (no Ípsilon) aquela que será uma das principais feridas abertas com o fim do analógico - o desaparecimento da escolha.
A esta míngua de alternativas aos pixéis podíamos acrescentar outras perdas, como a rejeição do acidente e do acidental, a renúncia do erro e da distracção, acasos do processo e limitações do suporte que tantas vezes foram validados como arte. Na fotográfica também.
3 comentários:
Interessante!
Se concordo com grande parte do que foi escrito. No final do texto tenho de discordar no que toca à escolha.
É verdade que com o 'fim' do analógico, fica-se limitado ao digital, dentro do digital a escolha de material para a produção artística é, a meu ver, superior ao que o analógico oferece.
Não escrevo isto a defender o digital, uma vez que uso filme para fotografar constantemente(descartáveis,35mm,120mm). Mas a verdade é que durante vários anos, a única escolha que existia também era apenas o analógico.
Nao acho que a pelicula va acabar. O mesmo foi dito do vinil (quando apareceu o CD), da radio (quando apareceu a tv e depois a internet) e ainda hoje ha pessoas a usar vinil e a ouvir radio.
Acho que a fotografia analogica vai ficar mais cara (A Fujifilm anunciou que vai aumentar o preço dos rolos em mais de 10%), mas nao vai desaparecer. Ainda ha fotografos (especialmente no Japao) que so usam pelicula.
Claro que a maioria dos fotografos usam digital porque e mais barato e mais rapido (pratico).
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