© Luís Maio |
Estação de metro do Cais do Sodré, 9h20 da manhã, segunda-feira de um dia de trabalho qualquer. A carruagem mais perto das bilheteiras estava a abarrotar quando soou o primeiro toque contínuo, a anunciar que o comboio estava prestes a arrancar. Nesse preciso momento entrou de rompante na dita carruagem um tipo com um “canhão” montado na máquina fotográfica. Deu meia dúzia de encontrões para arranjar espaço e começou a fotografar compulsivamente o pessoal ao fundo da carruagem. Até saltar do comboio a toda a mecha, mal ressoou o segundo sinal descontínuo de fecho de portas.
No mesmo dia, ao fim da tarde, desta feita no piso superior da gare ferroviária do Rossio, estava outro tipo (sim, tenho a certeza que não era o mesmo) sentado, na verdade quase deitado, com uma “olho de peixe” a disparar furiosamente os passageiros à saída das portas automáticas. Não sei se por diversão, se por exercício ou por compromisso profissional. O que eu sei é que estes dois estavam deliberadamente a tirar retratos sem licença aos utentes dos transportes públicos. O que, apesar das teorias mais ou menos mercenárias de Oliviero “United Colors” Toscani e doutros ideólogos da fotografia, é um crime punível pela lei, pelo menos segundo as leis comunitárias.
Talvez ninguém vá preso por causa disso, não certamente em Portugal, mas tirar fotografias a quem não quer ser fotografado é feio e muitas vezes dá direito a discussão. Nesta perspectiva, parece estranho que seja também um dos passatempos favoritos dos turistas. Quando se está de férias no estrangeiro, sobretudo em lugares exóticos do Terceiro Mundo, parece perfeitamente natural apontar a câmara a crianças que brincam seminuas na praia, a artesãos andrajosos, explorados em oficinas miseráveis, a noivos infelizes em casamentos combinados, ou a velhinhos adormecidos em poses menos decorosas nos bancos de jardim. Aproveitando a embalagem alguns turistas vão ao ponto de se divertirem a tirar bonecos comprometedores a pessoal da candonga, jovens delinquentes e mesmo mulheres da vida.
O “uniforme” de forasteiro parece conferir a quem anda de compacta em punho um misto de inocência e de liberdade, que não anda muito longe da impunidade. A ousadia que ganha o turista em férias é, em qualquer dos casos, a mesma que lhe falta no dia-a-dia e essa assimetria ajuda a explicar por que razão a câmara é um adereço indispensável em férias, mas é também a primeira coisa que se arruma na gaveta quando se volta a casa. Aí reside o paradoxo: vamos para o cu de Judas tirar retratos a malta que não conhecemos de lado nenhum, nós que não somos fotógrafos e nunca teríamos a coragem nem a motivação para o fazer à porta de casa. Prova dos nove: algum dos retratistas de rostos exóticos se deu ao trabalho, ou melhor, teve a coragem de fotografar os vizinhos da rua?
É, no entanto, um daqueles paradoxos que faz todo o sentido. Porque se vamos de férias para outro lado é frequentemente para ver e conhecer gente diferente. Depois ficamos sem jeito, como dizem os brasileiros, e não temos outro meio de meter conversa que não seja apontar a máquina fotográfica aos eventuais interlocutores. Acaba assim por se converter num gesto de simpatia e de cortesia o que vulgarmente passa por falta de respeito. Primeiro nós sorrimos e eles sorriem — ou então dizem logo que não com a cabeça e passamos à frente. Quando a coisa corre bem, no entanto, depois trocam-se gestos e palavras numa língua comum, ou noutra que se inventa com as que vêm à rede. É nesse princípio de qualquer coisa que acabam por estar os momentos mais inesquecíveis de uma viagem.
Foi justamente o que aconteceu com esta senhora do quiosque da gare de uma terriola remota, no sul do Cazaquistão, onde o comboio onde eu seguia para Astana fez uma breve escala. Primeiro assustou-se quando lhe apontei o telemóvel e meteu-se para dentro. Depois arranjou-se e voltou à janela do quiosque com o seu melhor sorriso. Tirada a fotografia apareceu o marido, que era pica-bilhetes, mais uma senhora que vinha no comboio e falava comigo em inglês e com eles em russo. Falámos de chouriços e de gomas, de crianças e da neve que tinha caído na noite anterior, antes de trocarmos moradas e de eu prometer mandar-lhe a foto.
(Título tomado de empréstimo do novo álbum de Sérgio Godinho)
6 comentários:
Não concordo com este texto que não percebo se é sentido ou se o devo ter como discurso retórico.
Não concordo porque defendo que o que em público está público se torna. Em segundo lugar porque não é em todo o lado que o acto de fotografar gente sem autorização é punível por lei, nos EUA por exemplo pensam da mesma forma que eu, tudo o que se encontra em local público é fotografável desde que não se atente contra a paz do fotografado. Por último, não é que sejamos todos uns predadores desprovidos de moral por o fazermos, alguns de nós vêm a parte bela do assunto e de facto usamos a nosso fotografia para estabelecer contacto (ler o meu último post no meu blog), enriquecer culturalmente e fotograficamente.
A primeira premissa de Luís Maio não tem nada a haver com a segunda, há que saber distinguir as coisas, os propósitos, os primeiros parecem ir de férias para fotografar e os segundos foram de férias e por isso fotografam. É diferente.
Ah, e ainda, eu fotografei os meus vizinhos e familia, não posso é fotografá-los para sempre, não têm muito interesse. ;)
Não sou nem nunca serei fotografa profissional, mas perco o norte quando vejo situações interessantes e o meu mal é que não sou capaz de fotografar sem perguntar se o posso fazer, seja onde for.
Sobre este aspecto já me aconteceram momentos verdadeiramente hilariantes, que me deixaram de boca aberta, e não mais esqueci.
Quando não resisto a fotografar uma determinada situação desfoco o máximo, e só o faço se estiver bastante longe de maneira que a pessoa fique irreconhecível.
No entanto, a minha maior atracção é a paisagem, e aqui, tenho de ser sincera e dizer que muitas pessoas procuram, ficar na fotografia.
No CCB, quando da exposição de Joana Vasconcelos, aconteceu-me algo incrível, que ainda hoje penso como foi possível. É a fotografia mais bonita que tenho da celebre Garrafa "O Senhor Vinho", e a minha raiva é não poder publicar.
Sabia que tinha tirado três fotografias e quando as passei para o computador, estavam boas, mas a última... superava as outras duas, mais ainda porque uma menina de, mais de mais ou menos três anos, dançava, completamente descontraída, na base e centro do garrafão, e do lado esquerdo da fotografia junto também ao garrafão um casal olhava para mim com um bebé ao colo.
Agora pergunto: como foi que só os vi em casa?...
Não vi qualquer movimento que me chamasse a atenção, mas eles estão lá e não sei quem são.
Sem ser por gabarolice, que não gosto, tenho a certeza que eles não têm daquela visita ao CCB uma fotografia tão boa.
É por isso que fujo de fotografar em determinados lugares mas a verdade é que em casos destes não há culpa do fotografo, no entanto pode ver-se metido em sérios problemas.
Desculpe o comentário ser demasiado longo, mas é um caso para que gostava de chamar a atenção.
Outro caso são as marcas dos carros, a que muita gente não liga importância e é uma identificação em que ninguém pensa.
É de evitar tudo o que possa ser identificação de lugares privados sem ter autorização para o fazer.
Podemos ser bem intencionados mas não sabemos quem temos na nossa frente.
Cumprimentos
Maria
Raramente compreendo as pessoas que me rodeiam, que vejo e que leio.
Vêm e temem atentados à sua privacidade onde muitas vezes estes não existem ou não são uma real ameaca e não se revoltam com outros bem mais perigosos.
Outras vezes até abrem mão da sua privacidade quando colocam na totalidade o que são (ou não), o que fazem e onde estão nas demais redes socias por exemplo.
Penso que aqui se trata mais de uma questão de bom senso. A "rua" será pública, mas caberá ao fotógrafo respeitar quem fotografa e às restantes pessoas respeitarem os outros e a si mesmas.
Infelizmente parece-me que o problema é mais a falta de carácter do que outra coisa qualquer, falta de carácter, de sensibilidade e de bom gosto!
o mais simples é cumprir o estabelecido no código civil e também no código penal sobre o direito à imagem e juntar algum bom senso...
jmsc
Penso que este texto faz sentido para um estilo de fotografia: o retrato "achado" em que o fotógrafo escolhe uma pessoa como principal assunto. Quem, por exemplo, faz fotografia de rua, não pode pedir autorização - é uma fotografia de um momento.
Seguindo a linha de pensamento de Luís Maio, as fotografias mais famosas de Henri Cartier-Bresson ou Elliott Erwitt, citando apenas dois exemplos de excelência, nunca teriam existido.
O seu tom absolutista faz com que este texto seja descriminatório: como em tudo na vida, na fotografia há uma enorme variedade de abordagens, técnicas, estilos e até personalidades dos fotógrafos. Defender um dogma único de abordagem e prática fotográfica é extremamente simplista e redutor.
Este texto parece servir para o autor afirmar uma egocêntrica superioridade profissional e moral em relação à maioria dos fotógrafos (principalmente os dos "canhões" e fish-eyes) simplesmente porque pede autorização às pessoas. Peço desculpa se não era esta a intenção, mas é o que, em suma, transparece.
Eu faço fotografia de rua e não peço autorização a ninguém, confio no meu bom-senso, valores morais e não sou agressivo na minha abordagem. Claro que ocasionalmente vejo pessoas fazerem má cara mas continuo a agir naturalmente com a consciência limpa por saber que não estou a fazer nada com o objectivo de denegrir ou prejudicar quem quer que seja. Quando me pedem explicações falo com elas de forma simática, educada e clara, nunca tive problemas.
Não há lei nenhuma que proíba fotografar quem quer que seja no espaço público. O que a lei protege é a utilização pública das imagens sem autorização dos fotografados, excepto em algumas situações pontuais que não se adequam a esta situação.
Não percebo o porquê de tanta resistência a uma câmara fotográfica apontada, quando todos os movimentos dos utentes do metro são filmados, desde o momento em que entram até ao momento em que saem das estações. A isto podemos acrescentar centros comerciais, restaurantes, supermercados e muitos outros locais que têm sempre uma câmara de video a fotografar-nos 8 vezes por segundo.
Daqui até termos câmaras na rua vai ser um instante. Recentemente chumbou-se uma proposta nesse sentido, mas, mais cedo ou mais tarde, a bem da protecção que o estado insiste em dar-nos, mesmo que não queiramos, esta proposta vai acabar por passar na A.R. Isto sim, pode vir a tornar-se de um instrumento perigoso. Mas os maus, no fim são sempre os fotógrafos. Haja paciência.
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