22 setembro, 2011
figuras
A aposta do Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira em exposições de fotografia tem sido espaçada mas muito criteriosa. No âmbido das comemorações do centenário de Alves Redol, figura maior do neo-realismo português, Pedro Loureiro apresenta um conjunto de retratos que tentam provocar memórias dos ambientes literários redolianos através de figuras inscritas no presente. É um jogo de descoberta daquilo que atravessa as imagens, a arte e os tempos - a permanência dos modos de fazer, da vida em comunhão com as coisas, com o trabalho e com a natureza.
Eis o texto que David Santos o director do Museu do Neo-Realismo (também curador da exposição) escreveu sobre A Figura (até 17 de Dezembro) de Pedro Loureiro:
A figura e a fotografia: entre o passado redoliano e a contemporaneidade
David Santos
Conhecido no meio artístico e jornalístico pelo seu trabalho de reportagem fotográfica, Pedro Loureiro é hoje não apenas um grande operator de imagem, consciente dos seus valores e técnicas (desde a imagem estática à sedução do seu movimento), como é responsável por uma singular identidade imagética, assumindo em todas as fases de produção das suas imagens uma inequívoca preocupação de cariz artístico. Do rigor formal detectado nas potencialidades do referente às cambiantes cromáticas determinadas pela lenta revelação do “preto e branco” – ainda que a cor também faça parte do seu jargão em algumas séries – o seu trabalho ilumina-se desde logo por uma particular atenção ao pormenor, ao detalhe iconográfico, transcendendo por isso qualquer leitura mais evidente ou simplista ao exigir uma revisitação sistemática do olhar do espectador.
Na verdade, a maioria das imagens de Pedro Loureiro, publicadas desde os anos 90 em jornais e revistas como O Independente e a Grande Reportagem, ou mais recentemente na Ler, resultam de uma apurada sensibilidade sobre a estética do retrato, na exploração da iconografia existencial, redimensionando, desse modo, a imagem da figura humana e a sua simbologia particular, reveladora ainda e quase sempre, ao mesmo tempo, da sua envolvente social e política. Nessa medida, as suas fotografias ultrapassam em muito o mérito jornalístico, ou a motivação original que muitas vezes as desencadeia. Essas imagens produzem, por assim dizer, um efeito que as conduz a uma espécie de valor suplementar, como se de uma escrita do olhar se tratasse, constituindo uma espécie de arquivo sobre o pulsar quotidiano da vida e do acto de a fotografar. Desse modo, o processo de significação elaborado em torno da percepção de diferentes culturas, povos e continentes, faz-se com Pedro Loureiro na observação simultaneamente poética e documental da figura humana. O humanismo das suas imagens traduz ao mesmo tempo uma visão profunda da nossa contemporaneidade, resgatando ao esquecimento valores e sentimentos que percebemos afinal essenciais à nossa própria sobrevivência global, e ainda uma vontade de comunicar para além do que a imagem nos projecta com maior eficácia ou imediatismo, pois o artista parece pontuar em cada pedaço de vida dessas imagens uma hipótese de leitura paralela, sugerida muitas vezes em pequenos sinais que se imiscuem lentamente, dando a ver, afinal, bem mais do que apenas o valor iconográfico central de cada imagem.
Viajado e marcado pelas experiências de vida dessa aventura contínua, Pedro Loureiro apresenta-nos um trabalho de retratística complexo mas sensível, que tanto convoca o cidadão comum como figuras conhecidas da nossa cultura. Entre a urbanidade europeia e a pequena aldeia do deserto, Loureiro capta a expressão de uma atmosfera de partilha essencial, que sabemos comum à grande maioria dos seres humanos, apesar de todas as diferenças possíveis de identificar entre eles. Nesta medida, podemos afirmar que as fotografias de Pedro Loureiro revelam um olhar particularmente atento à dimensão humana que nos rodeia, explorando não apenas a sua pluralidade político-social, económica e etnográfica, como as linhas comuns que a identificam na partilha do nosso mundo.
Este é um olhar experiente, que sabe da reacção do ser humano perante a câmara fotográfica, mesmo quando em algumas das imagens produzidas ou “encontradas” certos aspectos do acaso façam as vezes da pose, como se esse exercício particular procurasse apenas confirmar as palavras de Roland Barthes: “[…] o que constitui a natureza da fotografia é a pose. Pouco importa a duração física da pose; mesmo que dure um milionésimo de segundo […] há sempre pose, porque a pose não é aqui uma atitude do alvo, nem mesmo uma técnica do operator, mas o termo de uma ‘intenção’ de leitura: ao contemplar uma foto, incluo fatalmente no meu olhar o pensamento desse instante, por muito breve que tenha sido, em que uma coisa real ficou imóvel diante do olho. Faço recair a imobilidade da foto presente no ‘disparo’ passado, e é essa paragem que constitui a pose” .
Com efeito, tal como defende Roland Barthes, a pose é o acontecimento central de qualquer imagem, mas mais ainda, acrescentamos nós, das imagens deliberadamente inventadas como retrato. Neste sentido, Pedro Loureiro promove inclusive o seu acontecer ao dialogar com as pessoas que retrata, convidando-as a darem ao olhar fotográfico aquilo que querem dar, isto é, convidando à elaboração mais ou menos “natural” da “atitude do alvo”. Apesar disso, Loureiro retira das atitudes e poses do retratado quase sempre mais do que este supõe possível de capturar. Aí reside, na realidade, a dimensão maior e artística do fotógrafo que capta a imagem dos seres humanos, na exploração intuitiva e visual da sua figura retratável. E nesse aspecto particular, Pedro Loureiro revela uma mestria que o coloca entre aqueles que não só dominam todas as técnicas do exercício fotográfico, como entre os que delas retiram o potencial necessário para definir um outro alcance fenomenológico em torno da própria imagem, interpretada assim mais como vestígio incontornável de reflexão do que enquanto efeito de transparência ou pretensiosa expressão de uma qualquer “verdade”.
Aliás, a propósito do paradoxo e da inverdade fotográfica, Thierry de Duve alerta-nos que sendo a fotografia, ao mesmo tempo, “um paradoxo semiótico e um paradoxo fenomenológico”, é preciso lembrar como, partindo da fenomenologia, um historiador de arte como Hubert Damisch chegou à “impostura constitutiva da imagem fotográfica’ como signo, ao passo que Roland Barthes, partindo do semiótico, confrontou-se também com o paradoxo e a impostura da fotografia, mas como ‘mensagem sem código’ ”. A teoria da fotografia produzida desde a segunda metade do século XX, tem balançado quase sempre entre estes dois vectores, resultando hoje, após o domínio do estruturalismo semiótico, numa espécie de compromisso entre a indicialidade e a expressão, entre o signo, o registo, e o real referenciado como existência concreta, pois como nos diz ainda Duve, “[…] pela sua natureza de índice, o signo fotográfico não nos permite teorizá-lo em semiótica, sem que o fenomenológico, e até o existencial, se lhe colem à pele, por assim dizer. Na imagem, o real emerge não apenas como referência, ali, mas também como existência, aqui. O real contamina a imagem indicial. Em matéria de fotografia, não podemos limitar-nos a opor, sem mais, a imagem (o signo) ao referente (a realidade) ”. Ora, é esta dimensão complexa mas sempre sedutora da imagem fotográfica como resultado estático e sígnico e ainda a evasão que resulta do salto para o real representado que nos mantém presos e atentos, na expressão de Pedro Miguel Frade, como “figuras do espanto” perante esse acto mágico que nos apaixona e envolve na sua observação silenciosa. Este sentimento é ainda mais notório quando a imagem é um retrato, pois a humanidade apresenta-se como espelho do nosso próprio olhar, da nossa própria existência ou pertença a uma dimensão comum. Em certa medida, todos os retratos, sobretudo os fotográficos, são referentes aos retratados, mas também a quem os retrata e a quem observa o seu resultado final. Trata-se de uma troca de olhares, de expressões e significados que adquirimos e projectamos uns nos outros através dos resultados do “acto fotográfico” , como diria Philippe Dubois, viajando assim no tempo e no espaço, através da presença perceptiva e da partilha experiencial de uma imagem.
Neste contexto de interpretação e prática da fotografia enquanto retrato, Pedro Loureiro apresenta agora, no Museu do Neo-Realismo, um conjunto significativo de imagens de grande formato (100x100cm), no âmbito das comemorações do centenário do nascimento do escritor Alves Redol, figura cimeira da literatura neo-realista portuguesa e referência central da região vila-franquense. Estes retratos resultam, com efeito, de um jogo imagético que procura o fio de identidade ou reconhecimento que possa existir entre a memória das figuras ou personagens que outrora alimentaram a literatura redoliana e os ambientes humanos encontrados hoje nas mesmas regiões, explorando assim os ecos dessa leitura etnográfica sobre os grupos sociais que chamaram a atenção cívica e narrativa de Alves Redol e as dissonâncias manifestas, necessariamente, pela nossa contemporaneidade. Entre o retrato individual e colectivo, geracional e intemporal, Pedro Loureiro desenvolve, porém, uma estratégia comparativa que não produz deliberadamente juízos de valor, mas projecta no observador uma inevitável interpretação dos gestos e dos seus detalhes, ou ainda a percepção da iconografia dos objectos e acessórios que lhes dão sentido e identidade. Desse modo, estas fotografias promovem o que há de permanente entre as duas épocas convocadas, assim como o que nelas se declara como mudança subtil, mas profunda.
Tal como sempre aconteceu com a fotografia, sob o “impulso mimético” identificado desde cedo por Walter Benjamin , estas imagens obrigam-nos a reflectir sobre as diferenças e as semelhanças que nos ligam ainda aos dias em que Redol buscava nas figuras do povo do Ribatejo ou da região do Douro um traço maior de humanidade, na exaltação da sua irredutível dignidade social. De outra forma, com estes retratos, Loureiro procura vislumbrar no rosto, na pose e nos gestos das suas figuras o semblante que une todos os tempos a todas as gerações, assim como os equilíbrios ou as ambiguidades que se manifestam nos sinais de mudança que sempre caracterizam a inexorável passagem do tempo. Entre o real (vivido, rememorado ou alheio) e o seu efeito de representação, os retratos de Pedro Loureiro confirmam a dimensão indicial mas também existencial que está na génese da fotografia, bem como o eco de uma continuidade e tradição sobre os modos de fazer, ou ainda as rupturas ou transformações que se insinuam no aparato da sua composição contemporânea. Entre a pose e o instantâneo, esse paradoxo identificado por Thierry de Duve no trabalho fotográfico, estas imagens realizam, uma vez mais, a tarefa maior de uma ligação entre os seres humanos e os processos de significação que são determinados pela imagem enquanto signo ou conjunto de signos traduzidos na sua inevitável colagem ao real, pois não podemos esquecer que, “tal como a imagem desenhada, uma imagem fotográfica é uma superfície, mas uma superfície que não se deixa extrair ou abstrair completamente da realidade que a fez nascer” . Por isso, apesar da expressão artística que podemos observar no trabalho de quem fotografa, a imagem fotográfica estará sempre associada à sua condição documental, primeira manifestação da sua essência, pois como nos lembra Roland Barthes, “a Fotografia não diz (forçosamente) aquilo que já não é, mas apenas e de certeza aquilo que foi. Esta subtileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência não segue necessariamente a via nostálgica da recordação (quantas fotografias estão fora do tempo individual), mas, para toda a fotografia existente no mundo, a via da certeza: a essência da Fotografia é ratificar aquilo que representa”. E é precisamente o jogo eterno entre a realidade e a sua representação que mantém acesa a luz e o alcance ontológico desse efeito magnético a que chamamos fotografia. Na verdade, ao olharmos o conjunto de retratos agora apresentado por Pedro Loureiro percebemos facilmente como a fotografia nos transforma em testemunhas de um tempo, mas também em leitores de imagens que, apesar das circunstâncias específicas da sua produção, atravessam gerações, culturas e classes sociais, mantendo um vínculo estreito com esse humanismo que resiste, afinal, a todos os atropelos e se alimenta do gesto, da reflexão e da partilha da nossa condição humana.
© Pedro Loureiro
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