13 junho, 2011

em português

Robert Mapplethorpe e Patti Smith, homotography 6



A Quetzal vai editar em português Just Kids (Apenas Miúdos, nas livrarias a partir de 17 de Junho), as histórias que fizeram a história da vivência, da amizade e da cumplicidade umbilical de Patti Smith e do fotógrafo Robert Mapplethorpe. Just Kids ganhou no ano passado o National Book Award nos EUA na categoria de ensaio.

Aquilo que nos engancha em Apenas Miúdos é o retrato não só de uma época mítica de Brooklyn e do Chelse Hotel - finais de 60, princípios de 70, Burroughs e Ginsberg passeando pelas páginas -, mas sobretudo de um par de artistas que acreditavam o suficiente na sua arte para a ela se entregarem abnegadamente.

A crítica de Gonçalo Frota está no Ípsilon Online está aqui

Preâmbulo

Eu estava a dormir quando ele morreu. Tinha telefonado para o hospital, para lhe dizer mais uma vez boa noite, mas ele estava inconsciente, devido às doses de morfina. Ouvi a respiração esforçada dele pelo telefone. Fiquei em pé junto da secretária com o auscultador na mão, sabendo que jamais tornaria a ouvi-lo.

Mais tarde arrumei serenamente as minhas coisas, o meu caderno e a caneta de tinta permanente. O tinteiro azul-cobalto que fora dele. A minha chávena persa, o meu coração púrpura, um tabuleiro com dentinhos de leite. Subi vagarosamente as escadas, contando os degraus, catorze ao todo, um após o outro. Aconcheguei o cobertor ao bebé que estava no berço, beijei o meu filho enquanto ele dormia, e a seguir deitei-me ao lado do meu marido e rezei as minhas orações. Ele ainda está vivo, lembro-me eu de ter murmurado. A seguir dormi.

Acordei cedo e quando ia a descer as escadas soube que ele morrera. Tudo estava em silêncio, menos o som do televisor que eu deixara aceso durante a noite. Fui atraída para o ecrã enquanto a Tosca declarava, com poder e pesar, a sua paixão pelo pintor Cavaradossi. Estava uma fria manhã de Março e vesti o meu camisolão.

Subi os estores e a claridade entrou no estúdio. Alisei a manta grossa que cobria o meu cadeirão e escolhi um livro de pintura de Odilon Redon. Abri-o na imagem de uma cabeça de mulher a flutuar num pequeno mar. Les yeux clos. Um universo ainda não assinalado contido por detrás das pálidas pálpebras. O telefone tocou e levantei-me para ir atendê-lo.

Era o Edward, o irmão mais novo do Robert. Contou que, tal como me prometera, tinha dado ao Robert um último beijo por mim. Fiquei imóvel por uns instantes, e depois, lentamente, como num sonho, regressei ao meu cadeirão. Nesse momento a Tosca iniciou a grande ária «Vissi d’arte». Vivi pelo amor, vivi pela Arte. Fechei os olhos, e entrelacei as mãos. A Providência discernira como seria a minha despedida.


Apenas Miúdos, Patti Smith, tradução de Jorge Pereirinha Pires, 2011, Quetzal



Robert Mapplethorpe, Patti Smith, 1978

1 comentário:

acrobata disse...

livro fantástico ...
Li-o na versão original, mas se na altura que o adquiri já tivesse sido editado a versão portuguesa, com toda a certeza teria optado por ela ...
é de louvar o interesse de editoras portuguesas para a tradução deste tipo de livros ... muitos mais deveriam seguir ...

(no entanto em traduções as editoras portuguesas deviam ter um pouco mais atenção ás gralhas, das 1ª edições ... tem sido escandaloso, o numero de gralhas de impressão, e erros gramaticais, para quem faz disso a sua vida e negocio, é indesculpável, tantas falhas num só livro! )

 
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