14 fevereiro, 2010

/uma fotografia, um nome\


Valter Vinagre, da série Pensaram matar o bicho, ficou a peçonha, 1999-2009
© Valter Vinagre


Na vida de todos os dias há coincidências inesperadas. Tinha escolhido uma imagem de carácter antropológico do Valter Vinagre para comentar aqui (uma fotografia terrível, de um passo de uma cerimónia religiosa nocturna e tradicional) e o Sérgio enviou-me esta que de antropológica só tem o título da série, mas que igualmente mergulha nas impressões que são armadilhadas pelo inconsciente.

Valter Vinagre tem uma longa história na Fotografia. Explora temáticas variadas, mas do que mais gosto nele é a sua aptidão para captar a estranheza do mundo e dos homens, seja com esse olhar antropológico que revela gestos e costumes de sobrevivência, seja o olhar que demora nas contradições do sujeito.

Assim, esta é uma imagem intimista. Colheu um momento preciso em que os faróis de um carro atravessam a névoa de um dia, desenham uma paisagem de indecisão que nos lembra Ingmar Bergman. O homem, sabemos, gosta do jogo de codificar e descodificar e faz disso a sua longa peregrinação para a descoberta do mundo e de si. Sabemos que é o indecifrável, o sem-nome, que o perturba e por isso mesmo transforma esse exterior que absorve como um caos indomável, num cosmos organizado e, acima de tudo, desmontável – desde a lei científica ao enquadramento de uma paisagem.

Só assim o mundo ganha coerência e o homem segurança e isonomia.

Valter Vinagre levanta, por vezes, as brechas dessa percepção ilusória. Nesta imagem o espaço mais próximo (esse próximo que se nos oferece com uma clareza absoluta na definição e no controlo, como um flash de realidade bem descodificada) contrasta com a indeterminação que nasce sob o avanço da luz dos faróis do carro.

Reconhecemos estes lugares sob um céu liso, são lugares de estranheza nos nossos sonhos e no assalto dos medos dos mitos. Não interessa que se construam com arquétipos ou imagens de filme ou ainda com uma experiência mal vivida, são lugares de passagem entre dois mundos e é esse conhecimento que ecoa da mentalidade mítica que ainda se infiltra, quase imutado, no nosso quotidiano. A figura da passagem do conhecido para o desconhecido, de um mundo para um outro, marcou a indeterminação das coisas e do saber mágico da pré-ciência. Mas permaneceu na linguagem e atravessa os tempos, fazendo alternar sucessivamente uma concepção realista por uma abstracta da arte e do saber. O realismo que regula o nosso olhar é uma simulação biológica, do corpo, para identificar o perigo do mundo, que o abstraccionismo tende a codificar para melhor o compreender.

Este mundo que Valter Vinagre nos oferece é, naturalmente, perigoso. E o perigo é o alerta de todas as sensações envoltas pelo medo.

É isso que o fotógrafo traduziu: a familiaridade exacerbada do primeiro plano, a graduação da distância conjugando as muitas concepções que a teoria nos informa para que o segredo se mantenha como segredo. E o segredo é precisamente um dos indicadores do social e do íntimo que a nossa cultura informática tende a fazer desaparecer.

Talvez por isso a Fotografia se revele como o elo entre um saber nostálgico e o saber deste nosso presente volátil.

Maria do Carmo Serén

7 comentários:

Luis Carlos disse...

Nada de novo (ou inovador, ou antropológico, ou ambivalente, ou paradoxal...) nesta foto. A Oeste...

luis carlos, q não o anterior disse...

e o texto, para variar, um longo nada.

para quê estas derivações senão se diz nada que se relacione com a foto?

para quê inventar a possibilidade de um círculo onde, se algo está, é uma recta.

Para quando um texto curto e incisivo?

carlamendes disse...

belo texto.
belíssimo blog.
obrigada!

Hugo C disse...

A fotografia como uma forma de comunicação é sempre um meio de significar. Escrever sobre a fotografia é definir um significado e excluir outros, logo é sempre limitar a imagem, por mais metafórica e denotativa que a palavra seja. Que valor tem escrever sobre fotografia? Criar arte sobre a arte? Enaltecer uma imagem mesmo que tal signifique limita-la?

António Campos Leal disse...

Muitas são as vezes que escrevemos o pensado, e a Fotografia é desafiadora a provocar pensamentos. Logo a criar possibilidades de escrita. Não considero que escrever sobre Fotografia seja limitar-lhes o seu espaço, se assim fosse ao escrever-se em torno de uma ideia seria o mesmo que reduzir-lhe o impacto e nada mais interessante que o espaço da Dialética, nada mais enriquecedor que o contraditório. Valter Vinagre provoca mesmo, através do seu discurso fotográfico, (e tal discurso só existe na força dos pensamentos que brotam em nós), um fluir de ideias que ultrapassam o implícito das suas fotografias.

a miúda que ainda não se definiu disse...

A forma como cada um vê aquilo com que se confronta, é tão plural que parece que cada vez levo menos a sério o meu ponto de vista. Há quem veja inovador o lugar comum, na medida em que o aprofunda e quem veja paradoxal o que outros percepcionam apenas como um dado concreto e sem realce. Há até quem veja luzes onde outros vêm matéria densa e há quem dê significados metafísicos onde outros encontram meras relações numéricas. Tanto que nem sei se vale a pena dizer alguma coisa seja sobre o que for. Por vezes, parece-me que os pontos de vista só servem para criar grupos e pintar o mundo às manchas, para se ficar depois, com a sensação de contraste, de luta, logo de vida. Somos todos intérpretes distintos e é neste sentido que também as fotografias podem ser vastas e vazias como um livro em branco de onde um texto ou uma história se podem descolar. Creio as fotografias não se sentirão certamente condicionadas se alguém as fizer dizer segredos ou outra coisa qualquer. Mas é raro ver alguém falar da fotografia em si, e nisto também concordo com o que observador diz. Perante uma dada fotografia, o mais comum é ouvir-se falar do referente concreto que a mesma exibe, ou escapar pelas margens de outra forma, como talvez também eu o faça. O que de algum modo, não é o caso deste texto, e neste sentido já não concordo com o que o observador diz. Gosto de ouvir falar de fotografias mesmo quando dizem que sobre as mesmas não há nada a dizer: sente-se. Creio as pessoas que têm esta posição, são aquelas com quem mais se aprende e é neste sentido que é paradoxal! De qualquer modo, não sei o que se passa e para ser mesmo sincera, a mim pessoalmente, as fotografias dão-me uma estranha vontade de escrever como se as palavras e as imagens mutuamente se influenciassem e há textos que se parecem com fotografias como um que ontem li. Cheios de silêncio, economia nas palavras e uma carga visual sugestiva e concentrada.Talvez tudo isto seja uma forma de dizer que estou no meio entre tudo o que disseram a respeito desta fotografia e deste texto.

Uma fotografias, um nome e um texto, parece-me giro!

Agora uma sugestão do leitor para o autor do blogue:

Escolhes uma fotografia e um nome e um espaço em branco para os leitores comentarem. Publicas só depois, quando tiveres muitas leituras para não surgirem influencias. Só há um problema, para aqueles que dizem que não há nada para dizer das fotografias, para esses, o comentário poderia ser só aquela expressão dos olhos, uma posição corporal ou uma dança e para isso tínhamos que encontrar um fotografo que gostasse de fotografar as pessoas e o comentário à fotografia seria outra fotografia!. Logo, já não dá para fazer nada disto! :-)

Cinthia Davanzo disse...

Sou estudante de fotografia e o que gosto de observar e imortalizar com minhas lentes sao aqueles momentos aos quais eu tenho algum tipo de reacao emocional, que me fazem refletir, pensar e debater, ou simplesmente pelo fato de achar belo ou feio. Adorei a foto e minha reacao a foto veio atraves de suas palavras. Obrigada por me apresentar artista tao interessante como Valter Vinagre. Desculpe a falta de acentos, problemas tecnicos.

 
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