© Daniel Blaufuks
Cinco estradas de luz definem vias paralelas na noite envolvente. E criam o mundo. Aí, as sombras são, como na vida, incompletas mas pregnantes.Sabemos que estes homens caminham para um qualquer lugar, com uma certa pressa: estão conscientes da direcção e do porvir, que não vemos. Na imagem, porque os traços luminosos se interrompem, seguem para o interior da noite. É um lugar improvável, porque feito apenas da nossa imaginação e hábitos de aceitação determinista.
Esta imagem de Daniel Blaufuks inclui-se na minha pequena lista de fotografias mágicas. Com ela, para fugir à impressão de síntese, levanto questões do Ser, (quando Ser significava essência e suspensão de mudança e ainda o Ser de hoje, que é só fenómeno, aparição, seja na vida ou na comunicação). Estes homens, no cenário iluminado perseguem, determinados, um objectivo qualquer, vemo-los obstinados e voluntaristas a criar um destino. Não escapa que o fazem com gregarismo, o que não contraria o individualismo tenaz de uma cultura que nasceu, (ao que dizem) livre. O colectivismo é cada vez mais uma questão de marketing e sinalização: a porta de saída assinalada pode explicar o aparente gregarismo.
A aventura do quotidiano é aqui oferecida, em tamanho grande, pelo fotógrafo, é ele que os coloca na galáxia de luz, no caminho de Santiago. Já não lhe cabe o milagre técnico que é a suspensão do movimento, essa suspensão que não lhe retira o acontecer, porque esse reside na nossa imaginação associativa.
Posso lembrar-me daquelas fotografias de intenção psicológica, obtidas nas horas de ponta dos anos cinquenta, mostrando enxames humanos convergindo para estações de transportes urbanos e rarefazendo-se nas outras horas. Explico assim a pressa estatística destes passageiros de Blaufuks. Ou, debitando um olhar antropológico deter-me nos mini-grupos familiares ou não, nos gestos interceptados, no tipo de equipamentos.
Sei que a leitura dependerá em função de cada sujeito e dos seus interesses acumulados.
Se recusar a análise do detalhe, recolho a impressão causada, sincrética e obscura e posso aceitar a ideia gnóstica de iniciação dos escolhidos, atravessando os caminhos de luz para as suas verdadeiras realidades.
A fotografia condensa na sua superfície as nossas pequenas sensações e memórias erráticas. Raras vezes nos diz mais do que já sabemos, porque é assim que negociamos com o real.
Mas um fotógrafo pode propor uma vasta camada de leituras que suscitam a nossa sensibilidade e abrem as gavetas da aprendizagem. Fá-lo acumulando experiências e as dificuldades que a abertura ao mundo necessariamente desencadeia. Saber traduzir, como nesta imagem, a espessura do real e, ao dobá-lo num único acontecer, não conta uma história, ilustra e informa essa dimensão de conhecer que é o homem.
Mas para isso o fotógrafo tem de nos suspender o ritmo, prender este nosso olhar cada vez mais saturado de imagens. O burlesco ou o “apanhado” a que Cartier-Bresson gostava de chamar “momento decisivo”, é um estratagema. Mais difícil é envolver o captado numa perspectiva estética.
Quando a imagem é dolorosamente estética, intraduzível na impressão que a provoca, desnorteando a percepção mas sugerindo sedutoras interpretações, temos uma fotografia mágica. A recepção não é labiríntica, vai-nos entregando, sem intenção, à sua magia.
Tudo isto se desdobra na concentração de cultura e realidade que é “The Passengers”, de Daniel Blaufuks. Um local de passagem pode instaurar um ritual e talvez por isso mesmo prefira a versão alucinante da Gnose: homens comuns, deixando para lá das portas um mundo menor, efectuando a passagem marcada a luz para uma realidade maior.
Maria do Carmo Serén
Daniel Blaufuks vive em Lisboa. Foi distinguido com o Prémio BES Photo em 2007. Mantém uma coerente obra fotográfica e publicada, tendencialmente conceptualista.
4 comentários:
É de facto uma grande imagem. Parabéns ao Blaufuks
Gosto muito da imagem e dou os parabéns ao D.Blaufuks pela selecção, mas o texto está um pouco "atrapalhado".
Eu vejo a mesma imagem e dos homens existem também mulheres; a noite é um reino de sombra (visto que a luz é claramente solar, pela temperatura); a pressa não é aparente e que o diga a posição rígida do movimento dos transeuntes ou mesmo as direcções do olhar, ora para o lado, ora a falar com alguém - com alguma calma que o fotógrafo pausa ainda mais; a fotografia é mágica, mas o movimento não será tanto obstinado, mas conformado; associo o colectivismo a algo mais organizado e não tanto a um movimento colectivo involuntário (uma que é uma colectividade? não será algo mais compacto e organizado?) - se vivemos, como a autora refere, de forma gregária, então é normal que dada a organização socio-profissional do espaço urbano, muitos de nós partilhemos dos mesmos instantes, no mesmo espaço; diria que a imagem tem algo de cinematográfico - o "spotlight", ou do palco do quotidiano; não o relacionaria com o momento decisivo do Cartier-Bresson, pois este movimento dos passageiros é o "quotidiano" - o aparentemente aborrecido e indistinguível quotidiano, e é este para mim o maior valor da imagem - transformar o "normal", num momento solene, ou mesmo "sagrado": meros cidadãos, na mobilidade daquilo que as suas pernas lhes permite; num movimento comum, involuntário e individual (no entanto em grupo) dirigindo-se para a "fonte de luz", numa estranha calma e ao seu ritmo.
É uma muito boa imagem.
Lindo! Esta virtude que proporciona a fotografia, de dizer tanto num fragmento!...Os corredores da luz, conduzem afinal, para a noite, para o indiferenciado, onde nenhum de nós aparece.
Sim,[...] tudo se dissolverá
E como este espectáculo etéreo se pagará,
Não deixando nem um fumo atrás de si. Somos aquela substância
De que os sonhos são feitos; e a nossa pequena vida
Acaba num sono… ( SHAKESPEARE)
Gostei de te ler Filipe. Não misturaste muitos conhecimentos adquiridos de técnica fotográfica e neste caso não seria necessário para não perdermos a sensação de "magia"!Também gostei do texto da Senhora. Tem elementos interessantes, mas não é um texto de apreensão fácil. É necessário ler e reler com atenção e como é habitual nela remete para outros conceitos dos quais nem sempre se está familiarizado. Creio que Maria do Carmo Serén não deve fotografar tanto como tu, como tal, é a leitura de uma pessoa que está mais do lado do observador e da investigação da cena artistica, o quem em nada lhe retira mérito.
:-)
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