16 março, 2009

O homem da multidão


Daniel Rocha/Público


O crítico Eduardo Cintra Torres ficou encantado com esta imagem do fotojornalista Daniel Rocha. Eis o texto que escreveu para o Arte Photographica:

A fotografia de Daniel Rocha que ilustrou a manifestação de sexta-feira em Lisboa tem o brilho das grandes imagens prenhes de significados. É um texto aberto à espera dos nossos pensamentos e, também, das nossas emoções.

Em vez dos cem mil, dos duzentos mil, um só. Um homem olha para a câmara do fotógrafo, para nós. Ele está parado, está a posar para nós, mas não se exibe a si mesmo, exibe a sua razão de estar ali, sabe-se lá donde ele vem, não parece de Lisboa, não tem ar de Restauradores, do Palácio Foz escondido mas mostrado o suficiente para situar a fotografia, para fazer dela a imagem da reportagem, da notícia.

O homem exibe a sua luta, seja ela qual for, com o São Guevara numa bandeira e na boina. A bandeira é preta, será anarquista, será comunista, será guevarista, ou é apenas um contra que tem o santo como bandeira de ser contra? É do contra, vê-se-lhe na cara. A bandeira é preta, mas a camisa é vermelha, um mais um dá a simbologia dos anarcas, mas a boina é verde, porque em Portugal os internacionalistas gostam é da santa terrinha, o Guevara é como se fosse a Catarina Eufémia, são parecidos nas suas imagens simbólicas, podia ser ela na bandeira se ela, a Santa Catarina mártir, não fosse propriedade privada do PC.

Enquanto o homem pára para nós, o resto do mundo anda dum lado para o outro. O fotógrafo escolheu uma velocidade de captação que isolou o momento exacto e deixou que os outros manifestantes continuassem — nesta imagem parada — andando, marchando, falando. O movimento do homem de chapéu branco que está por trás do protagonista ficou congelado para sempre na fotografia. E mesmo o São Guevara tremula ligeiramente na bandeira.

O homem parou para o fotógrafo porque sabia que ia ser uma grande fotografia. E foi. Vê-se-lhe nos olhos. Ele parou a luta para a fotografia, mas a paragem foi mais luta que o resto. Ele tem a cara forte, marcada, arguta, popular, inteligente no centro visual da imagem. O centro geométrico cai-lhe na garganta, que é órgão físico de importância numa manifestação, e a cabeça está logo acima, triangula em conjunto com a intersecção das diagonais.

A cabeça é o centro de tudo porque o ângulo ligeiramente picado, com o fotógrafo um pouco mais alto ou acima dele, atira-lhe o corpo para o asfalto da cor da bandeira. A lente angular aproxima de nós a mão que segura o pau da bandeira, mas não nos ameaça, não há perigo, a mão segura gentilmente o mastro, que repousa no ombro. Os óculos, queiramos ou não, são sinal de inteligência e também repousam sobre o peito, porque o dia não é de leituras, mas de andaduras.

A multidão não ameaça, manifesta-se, fala pelo número, fala pela garganta que a fotografia mostra mas só ouve por imagem, a manifestação diz não, que é a única palavra que se lê bem da bandeirola ao fundo.

Não sei por onde vou, sei que não vou por aí, diz-me o homem. Não sabemos quem ele é, não sabemos de onde vem, não sabemos se é do PC, do BE, do sindicato A ou B, se é anarquista, se é livre ou prisioneiro dalguma ideologia, não sabemos, não queremos saber o que quer dizer o sorriso irónico que lhe aflora nos olhos e nos lábios. Ele é o homem da multidão. Ele é o homem daquela multidão e, por causa desta fotografia, de muitas outras multidões.

Eduardo Cintra Torres

6 comentários:

Anónimo disse...

Sempre gostei de "ver" os textos que surgem das imagens. O que menos me agradou no texto foi a referência a aspectos técnicos relativos à velocidade de obturação e à lente angular… Neste caso, estas referências ficavam melhor sem se "ver". Como as linhas de uma bainha. Creio que muitas vezes, vejo um texto como uma fotografia. Em relação, mas independentes. Ainda não sei explicar muito bem isto. Não está de todo claro. Tenho que ver melhor.

(De qualquer modo, desta vez parece que a cena da grande angular a sublinhar o braço ficou bem! Nem sempre curto muito essa tendência.)

Anónimo disse...

A fotografia em causa tem uma força fora do vulgar.
Atrever-me-ia a categorizá-la como uma imagem de classe (operária, claro!).
Já o texto do São Eduardo Cintra Torres comentando a fotografia, não deixou de transparecer algum incómodo com o seu significado.
Quando afirma «Não sei por onde vou, sei que não vou por aí, diz-me o homem», compreende-se que não olhou bem o rosto e olhar do fotografado, um homem que sabe por onde vai e para onde vai, um homem que sabe que na luta está o caminho para um Portugal melhor.
Felizmente o olhar crítico sobre a realidade não é propriedade privada de nenhum São Qualquer Coisa.

Anónimo disse...

A grande angular e' a "imagem de marca" da Fotografia do Publico.
Em parte faz parte da historia do foto-jornalismo em Portugal e e' impossivel nao dar por ela.

Ja' era merecido um Publico Press Photo em jeito de retrospectiva, by the way...

Anónimo disse...

A fotografia parece manipulada no sentido a dar mais destaque ao homem, ele está claramente mais claro e mais saturado que o resto da foto.

Anónimo disse...

Eduardo Cintra Torres parece ignorar que o processo fotográfico é composto de dois momentos: o instante da captação da imagem e a sua «revelação». Na «revelação» a imagem é claramente manipulada, contrastes, tonalidades, até o efeito de movimento é induzido por photoshop ou software parecido, Espanta-me que Eduardo Cintra Torres venha exibir em público a sua ignorância embasbacada. (JCraveiro)

daniel disse...

Agradeço todos os comentários relativos à imagem em questão.
Tal como os elogios, também as críticas são muito bem-vindas.
Nada como o autor da foto para esclarecer todos os aspectos relacionados com a obtenção desta imagem.
Como é óbvio há uma intervenção/manipulação da realidade a partir do momento em o fotógrafo está presente na manifestação.
Essa intervenção/manipulação continua no tratamento da imagem.
Contrastes, tonalidades, escurecer aclarar destacar mais ou menos uma parte ou outra da fotografia faz-se em qualquer imagem muito antes do surgimento do photoshop, desde que surgiu o processo fotográfico, é parte intrínseca dele.
Mas termina aí.
Pelo menos no jornal Público, no trabalho fotográfico assinado pelos jornalistas que com ele colaboram.
Quando assim não é, deve e tem de ser dito ao leitor.
Voltando à imagem em questão, esta
não foi sequer reenquadrada.
Foi sim tratada como seria em termos de laboratório convencional, mais contrastada, mais aclarada ou escurecida, foi apagada alguma sujidade do sensor digital (que está sujo) foi dado algum "sharp" que é comum aplicar nas imagens digitais, mas não foi DE TODO induzido nenhum efeito de movimento como Jcraveiro sugere.
Tenho/temos um livro de estilo e um código deontológico e para além de tudo isso uma conduta moral própria
que sabe que a nossa credibilidade profissional acaba quando começarmos a "brincar" com este tipo de coisas.
E tenho também o original da foto pronto para comprovar o "antes" e o "depois" sempre disponível para ser mostrado aos colegas, director, provedor ou qualquer comissão de carteira que o solicite.
Daniel Rocha
Fotojornalista

 
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