24 janeiro, 2009

Goa

© António Júlio Duarte


(P2, Público, 24.01.2009)

Há geografias que habitam em permanência nos fotógrafos. Podem morar neles de forma subtil, em estado de latência, fornecendo-lhes impulsos criativos pontuais, ou podem revelar-se a cada disparo, de maneira mais intensa e recorrente. António Júlio Duarte tem o Oriente dentro de si e pertence ao primeiro grupo. Houve períodos da sua produção fotográfica - sobretudo os primeiros, a preto e branco - em que o lugar se identificava, mas nunca com grande espalhafato simbólico. Sabíamos que havia distância nessas imagens, mas essa lonjura era-nos dada de maneira quase imperceptível, por detalhes, sempre a fugir ao protagonismo. Estava lá e, em vez de gritar, sussurrava. Mesmo depois, já com a cor e o flash directo no limite do suportável com os quais passou a trabalhar, a crueza com que registou objectos, pessoas e paisagens urbanas, ele foi hábil a fugir ao exótico pelo exótico.
António Júlio Duarte - que no final do ano passado deixou o colectivo Kamera Photo - consegue muitas vezes captar a essência dos lugares pela estranheza e fealdade, sem a ajuda e o conforto do reconhecível, do já visto, do belo.
As 30 fotografias da série Jesus Never Fails, exposição que já passou pelo Centro Cultural de Lagos e que hoje abre ao público no Museu da Electricidade em Lisboa, mostram Goa pelo lado menos bucólico, sem o romantismo dos postais ilustrados. "Esta não é a Goa das recordações pós-coloniais; não identificamos nem a bela tristeza dos que ficam, olhando-nos como referente, nem a bela decadência daquilo que se deixou ao partir", escreve João Pinharanda no texto de apresentação da mostra. Esta Goa de cores desbotadas, registada em 2004, parece abandonada por alguém. "Estas imagens contêm em si mesmas (sem necessitarem de qualquer designação) um poderoso espírito de lugar: e é um lugar social, económica e psicologicamente devastado, que abre fendas (por onde entram homens e animais), que é invadido pela natureza vegetal e pela construção humana, que colhe bolores e lixos, humidade e pobreza", afirma Pinharanda. E de repente a frase "Jesus never fails", que andava nessa altura escrita nos autocarros da cidade indiana, roça a provocação. António Júlio Duarte encarou-a como "auto-ironia" e escolheu-a para mote de todo o trabalho. A fotografia do autocarro com propaganda religiosa foi tirada, mas não consta da série. Para adensar "o enigma", explica o fotógrafo.
Jesus nunca falha. Será que não?


© António Júlio Duarte


Jesus Never Fails, de António Júlio Duarte
Museu da Electricidade, Lisboa
Até 15 de Março

Sem comentários:

 
free web page hit counter