22 outubro, 2008

/uma fotografia, um nome\

Movido a pés
© Orlando de Azevedo


O documental é um caso grave na significação fotográfica contemporânea. Até aos anos 50 era tudo fácil, arrastava-se com gosto a interpretação positivista: uma perspectiva que olha para fora, de reportagem, partidária mas colectiva. Perdera-se a reflexão sobre a não coincidência do olho humano com a câmara que punha em causa o naturalismo e passara-se a aceitar alegremente a verosimilhança da imagem.

A fenomenologia, dando predomínio no conhecer à consciência e, de certo modo, o uso vulgar da teoria psicológica do Gestalt, com o seu jogo de interpenetração de forma e fundo, abalaram a dualidade sujeito-objecto e trouxeram a primeiro plano o papel do sujeito. É um sujeito que revela o outro nas suas percepções, antagoniza o mundo e o que observa, expressando-o simbolicamente. O “eu” artista que se vai definindo é solitário, condensa em si a aprendizagem, mostra-se na obra. Passa-se da metonímia à metáfora. A Arte Pop é já um processo em desenvolvimento sobre a significação, anunciando o neo-documentalismo.

Torna-se então evidente que esta fotografia de Orlando de Azevedo não se expressa como um documento, o que a síntese interpretativa que é Movido a pés, bem explica. E, se a expressão do condutor nos apela ao expressionismo duro, o sentido da imagem é outro. Tudo aí, neste contemporâneo Robinson Crusoé se conjuga para o símbolo: a imitação eficaz da carrinha de transporte, (é um 2º carro, é uma empresa, há outro veículo em circulação), o farol protegido pelo plástico, as tábuas mal ajustadas de restos de armário de cozinha, as janelas de plástico transparente, o espelho reflector com a imponência devida, as rodas de refugo e, virado para nós, o firmamento das estrelas do glamour da moda. Sendo e não sendo materialmente uma carrinha de transporte, é uma ideia de veículo, como são aquelas associações primárias que nos dão o indeciso mas eficaz conhecimento do mundo. Esta imagem mostra-nos a incompatibilidade da ideia com a medida, a impossibilidade de ser reduzida ao seu conteúdo material. E isto é, no mínimo, uma das definições da arte.

Orlando Azevedo é um fotógrafo de coisas belas, paisagens poderosas, sensibilidades muitas, retratos do acontecer e do quase, quase ser. Entende que a haver estética, se trata afinal de um momento subjectivo da objectividade que é própria do estético que o objecto parece desencadear no fotógrafo. E assim as suas imagens são literatura, enrolam a sua dose de poesia.

Naturalmente não aceita que interpretem as suas imagens como metáforas. Mas eu vejo aqui a alegoria da criatividade, o que é decididamente bom nesta nossa época em que dominam o pessimismo cultural e o optimismo tecnológico. E por isso mesmo não é um momento decisivo nem essa recessão infantil, mais erótica do que estética onde se inscreve muita da arte contemporânea. Nada disto se resume a um acontecer, está mais do lado do ir sendo e é isso que sentimos. Fez capa de um livro de Eduardo Galeano e foi seleccionada na América Latina quando da comemoração dos 500 anos de domínio português. O que também é uma alegoria, doa ou não doa a nós, portugueses.

De forma irrazoável uma alegoria desperta-nos um sentimento de utopia. Este condutor que faz carretos e descansa no intervalo do percurso pedonal não criou uma utopia, porque a sua ideia se realiza. Mas suscita as muitas utopias que ainda nos ligam o cérebro e a mão e que são para nós, no deserto da vida, as pequenas glórias do quotidiano.

Maria do Carmo Serén

Orlando Azevedo, açoriano no Brasil, é escritor, fotógrafo, editor.
Criou a Bienal Internacional de Fotografia e o Museu de Fotografia Cidade de Curitiba.

2 comentários:

Anónimo disse...

Como é afinal? Uns fotografam, outros falam de fotografia. Disseram-me que quem fotografa raramente se interessa em falar sobre fotografia. Será? (a pergunta é quase sempre como um horizonte que nunca se atinge, sobretudo nos blogues). Mas uma coisa é certa, na excepção à regra, quando se fala de fotografia e se tem a experiência de fotografar, o sangue que circula no discurso será diferente. Mas tomem atenção, que não estou a falar em termos de juízo de valor, apenas a tentar colocar-me no lugar de quem vê e comenta. Só estou para aqui a pensar alto como se pode ler uma imagem fotográfica sem câmara ou com câmara, com filosofia ou sem filosofia, com carga afectiva ou sem carga afectiva. Tretas, que nem roubam nem acrescentam nada ao que já está feito!

Eduardo Chaves disse...

Sérgio,

Sempre quando posso, entre uma reportagem e outra, ou em horários que a minha mente permite viajar, venho até seu blog e acompanho os textos repletos de imagens. Belas imagens alias.

Queria te parabenizar. Vc é sensível e isto para um fotógrafo é essencial. Afinal escrevemos iluminadamente. Escrevemos com a luz.

Sobre este post: rs... a imagem é no mínimo instigativa. Gosto de PB, já conheço o trabalho do Orlando de outros blogs e esta imagem realmente impressiona. E o texto "PARE", parece dialogar extreitamente com a cena.

rs... ótima escolha!

Abraços

Eduardo Chaves
Site: www.evchaves.com.br
Blog: www.evchaves.blogspot.com (Atualizado Diariamente)

 
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