18 julho, 2008

*À conversa com...


Cristina García Rodero
(© Nelson Garrido/Público)

...Cristina García Rodero


Dez anos dentro de um
culto mestiço


Cristina García Rodero é dona de uma vasta obra sobre religiosidade e paganismo na Europa Mediterrânica. Depois do consagrado álbum España Oculta (1989) partiu à procura de outros cultos e manifestações de fé. No Haiti, maravilhou-se com os rituais do vudu. Na Venezuela embrenhou-se na montanha da Sorte durante dez anos para captar o mundo mágico-religioso da veneração a María Lionza. O espiritual é importante, mas o que a preocupa mais “é sempre o ser humano. O PHotoEspaña mostra em Madrid o resultado desse longo ensaio que foi reconhecido este ano no World Press Photo.
Sérgio B. Gomes, Madrid

(ípsilon, 18.07.2008)

María Lionza é deusa, rainha, donzela. E no meio da selva venezuelana há quem a veja como virgem marmórea, como mãe generosa, como mulher poderosa e vingativa ou como simples borboleta azul. As faces da “deusa dos olhos de água” podem ser muitas. Tantas quantas as origens dos que lhes prestam reverência e dos que se servem dos seus poderes para chegar à purificação, sarar males de amor, expulsar maus-olhados e curar maleitas várias. Nas cortes espirituais de devoção “marialioncera” reinam vikings, índios, escravos negros e malandros pop.
É este culto mestiço que se alimenta de vários tipos de religiosidade e outras tantas tradições exorcistas no meio da montanha da Sorte, província de Yaracuy, que Cristina García Rodero mostra numa das principais exposições do PHotoEspaña, o festival internacional de fotografia e artes visuais que decorre em Madrid.
Ano após ano. Várias viagens por ano. Nos últimos dez anos, a fotógrafa espanhola regressou vezes sem conta à Venezuela para dar aos rituais em torno desta figura mística uma visão ensaística profunda que não se ficasse pelo folclore dos exorcismos orgiásticos. O resultado impressiona não tanto pela dimensão da empreitada, por si digna de registo, mas sobretudo pelo sentido estético e pela intensidade da expressão com que aparecem rostos e corpos.
No princípio, à luz do dia, García Rodero (Puertollano, 1949) viu pouco mais do que cerimónias de “velação”, um dos principais ritos do culto que serve para curar, purificar e iniciar médiuns. Até que percebeu que “o susto acontecia à noite”. Que é como quem diz: é nas trevas que a verdadeira acção tem lugar. Foi a noite e as condições de luz adversas que, “por desgraça”, a obrigaram a usar o suporte digital, contou no dia da inauguração da exposição. Mas foi também graças a ela que se “encantou” pela cor que aparece em boa parte das fotografias deste trabalho.
Depois de uma visita guiada inaugural, acompanhada pelo comissário venezuelano Tomás Rodríguez Soto, Cristina García Rodero, uma verdadeira “anti-star”, falou sobre as diferenças entre portugueses e espanhóis, confessou uma paixão por S. Bartolomeu do Mar e mostrou confiança no regresso do ensaio fotográfico às páginas da imprensa escrita.

Juntou-se à Magnum em 2005 e tornou-se fotógrafa associada da agência no ano passado. De que maneira esta condição de “fotógrafa da Magnum” mudou o seu trabalho?
De maneira nenhuma. Porque já sou muito velha [risos]. O que é mais importante para mim na Magnum é saber que estou entre fotógrafos que têm uma enorme sabedoria. E isso é um aliciante para tentar estar à sua altura, para não entrar no marasmo. Para estar na Magnum é preciso ter a mesma categoria que eles têm. Digamos que é um aliciante extra, mas não mudou a minha maneira de olhar para as coisas. O que tenho é mais vontade de trabalhar.

É a única fotógrafa da Magnum na Península Ibérica. Interessa-lhe trabalhar em projectos que envolvam Portugal e Espanha?
Claro que sim. Estive a trabalhar em Portugal num projecto sobre o Sul. E estive nos Açores. Vou frequentemente a Portugal fazer carnavais e festas de Inverno. Trabalho também muito perto da fronteira entre os dois países. E há um sítio que me encanta em Portugal que é S. Bartolomeu do Mar. Sempre que posso vou lá. Ainda no ano passado lá estive. Houve uma tempestade e o mar ameaçou as casas. Tiveram de pôr pedras para tentar salvá-las. Deu-me muita pena. A praia ficou muito modificada e destruída por causa destas pedras enormes. Mas, para um espanhol, ir a Portugal é um prazer. Porque nos sentimos em casa, com pessoas mais delicadas, mais educadas. Em Portugal a fiesta é capaz de não ter a força que tem em Espanha. O carácter mais recatado, mais tranquilo dos portugueses tira-lhes a força que os espanhóis revelam para a diversão.


Exposição María Lionza, La Diosa de los Ojos de Agua
(© Nelson Garrido/Público)

Desde há muito que fotografa rituais ligados a crenças religiosas e pagãs. O que é que procura exactamente mostrar-nos nestes trabalhos?
O que me preocupa é sempre o ser humano. Tento sempre descrever as coisas que são importantes para ele, as coisas que estão relacionadas com a vida – o prazer, a ternura, o amor, a guerra, a fé, a religiosidade, as grandes tragédias naturais. Tudo o que é importante para o ser humano interessa-me – é o que me move. Quero mostrar as pessoas, os seus conflitos internos e externos.

Tem formação superior em Pintura. Transporta alguma dessa linguagem pictórica para a fotografia?
Estudei Belas-Artes. Sou licenciada em Pintura e quando terminei deram-me uma bolsa. Viajei por toda a Espanha e, ao fim de um ano, percebi o que queria fazer. A pintura é outro meio. Sou autodidacta na fotografia e o facto de nunca ter passado por uma escola complicou as coisas. O processo de aprendizagem é muito lento, difícil e gasta-se mais dinheiro. Foi a prática que me deu todo o conhecimento. Na pintura senti que estava formada, que havia um caminho pela frente, mas na fotografia não. Mas muitas das coisas que aprendi na pintura relacionam-se com a fotografia que hoje faço. Não sei se na maneira de tratar a forma, o espaço, a luz ou a composição. E depois há também toda a bagagem cultural que um curso de pintura dá. É importante saber quem foram os grandes mestres e conhecer as grandes tendências. Não damos bem conta disso, mas na hora de olhar pelo visor, esse conhecimento, que se expressa em fracções de segundo, está lá.

O ensaio fotográfico é um género em extinção nos principais jornais e revistas de todo o mundo. Acha que o espaço para este tipo de trabalho na imprensa acabará por desaparecer?
Creio que não. Tenho a esperança de que não. Há modas. Os anos 50 e 60 foram talvez os mais importantes para o ensaio fotográfico. Mas a técnica, a economia e as próprias ideias dos fotógrafos influenciam muito este género. E creio que os jornais neste momento estão mais preocupados com o lazer e com o bem-estar, onde a decoração, as marcas, a cozinha, os futebolistas são mais importantes. É um mundo um pouco vazio, superficial. O ensaio é um estudo em profundidade de algo e isso não interessa agora à imprensa. E, por outro lado, não querem gastar dinheiro. Querem gastar pouco e ganhar muito para comprarem outros meios. Não pensam no fotógrafo que está a arriscar a sua vida. Os fotógrafos têm cada vez mais dificuldade em encontrar espaços para publicarem o seu trabalho. Mas, em contraponto, cresce o interesse pela cultura. E esta tendência acabará por absorver o trabalho dos fotógrafos ligados tanto à reportagem como a outros géneros de fotografia. Se andar por Madrid aos domingos, todos os museus estão cheios, há filas à volta deles para entrar. Vê-se que as pessoas têm avidez de cultura e de conhecimento.

Exposição María Lionza, La Diosa de los Ojos de Agua
(© Nelson Garrido/Público)

O trabalho que agora apresenta no PHotoEspaña demorou dez anos a concretizar. Por que é que demorou esse tempo? Quais são para si as condições ideais para que um projecto desta natureza veja a luz do dia?
Demorei este tempo porque sou muito pesada [risos]. Não conheço as condições ideais. Caso contrário, teria feito muitos mais livros. Era importante que houvesse mais bolsas, mais publicações, mais venda de livros, mais salas de exposição. Madrid – que é uma cidade que está a tentar vender-se ao mundo como destino de turismo cultural – não tem muitas salas para fazer exposições. Há salas oficiais, mas quem está a começar não consegue chegar lá. Eu sou uma privilegiada. Deram-me espaço e condições. Pagaram-me toda a produção, o livro [exposição e catálogo do trabalho sobre María Lionza]. Houve um designer, um comissário. Houve tudo o que precisei. Mas não há um meio termo...
Sou uma pessoa insistente, perfeccionista, insegura. E, de cada vez que começo um trabalho, nunca sei quando vai terminar. Muitas vezes são as circunstâncias que me fazem parar, expor e publicar. Mas quero continuar a seguir o fenómeno de María Lionza. Sei que vou continuar a pedir ao Tomás [comissário da exposição] que me consiga as autorizações para entrar no parque [da montanha da Sorte, na Venezuela, onde acontece o culto]. Demorei mais tempo por causa desse perfeccionismo e porque, a cada ano, fui encontrando coisas novas. Coisas que foram enriquecendo o trabalho. Porque quando se chega lá sem mais nem menos o que se vê são cerimónias normais. Custou muito encontrar coisas diferentes. Foi preciso ir lá muitas vezes. E cada vez que regresso conheço algo novo. Através destas pequenas coisas fui formando um trabalho com o qual me sinto contente.

O que é que a marcou mais no culto a María Lionza?
O transe. O transe é uma coisa que me surpreende muito e que está presente em muitas culturas. Surpreendeu-me esse comportamento que, num tempo tão curto, transforma tanto as pessoas, muda aquilo que elas são realmente. Outra coisa que me marcou muito foi o sentimento de comunidade e de entreajuda – lá todos se ajudam e todos estão para todos.

Algumas fotografias mostram rituais que parecem muito violentos. E nesses casos as coisas podem correr mal. Não há lutas?
Não. Em mais de dez anos de acompanhamento do culto nunca vi lutas.

A presença de uma máquina fotográfica nestas ocasiões nem sempre é bem-vinda. Foi fácil integrar-se no meio dos crentes durante estes anos todos?
Uma câmara fotográfica incomoda sempre. Fui procurando o máximo de intimidade. Creio que as pessoas facilitaram-me muito o trabalho – são abertos, as pessoas latinas são mais abertas do que outras pessoas. A relação é muito fácil. Não são precisos contactos directos. E quando se diz que se vai fazer um trabalho sobre María Lionza ainda abrem mais as portas. O facto de vir de fora da Venezuela também faz com que as pessoas fossem mais receptivas. Eles cuidaram de mim, mimaram-me, senti-me protegida. Já me perguntaram se alguma vez senti medo, porque há situações muito fortes. Nunca tive medo. E, às vezes, impediam-me de ir sozinha ao poço dos médiuns que está longe do centro onde tudo acontece, a um quilómetro da base.

Também já esteve nos Açores a registar os rituais católicos das ilhas. Pensa voltar a Portugal para outros trabalhos?
Aos Açores é difícil que volte, a não ser para as festas do Espírito Santo. Mas fui muito feliz nos Açores. Há paz. E, pelo menos na ilha onde estive a trabalhar, em S. Miguel, havia uma vegetação... recordo as hortênsias azuis que marcavam os limites do terreno. Marcar o limite dos terrenos com flores? Em vez de pedras, paus ou outra coisa qualquer? São flores tão grandes, tão azuis e tão presentes na paisagem. Recordo que, nos Açores, trabalhei muito e fui feliz. Portugal está tão perto e as pessoas são tão agradáveis. Não sei como os espanhóis... às vezes o que temos mais perto é o que desprezamos mais. Os espanhóis viajam para países longínquos e não vão ao país que está ao aqui ao lado. Mas cada vez está a descobrir-se mais. Ir a Portugal é como estar em casa.

María Lionza. La Diosa de los Ojos de Agua
Secção Oficial do PHotoEspaña2008
Consejería de Cultura y Turismo, Sala Alcalá, 31, Madrid
Até 31 de Agosto

Sem comentários:

 
free web page hit counter