20 março, 2008

/uma fotografia, um nome\

S/título, João Pinto de Sousa
Há, na relação com a fotografia, um descomplexado espaço de magia. Imagem, (imago) é, como se sabe, uma palavra latina ligada à máscara funerária obtida, em réplica de cera, do rosto dos mortos. O que se procurava era, antes de tudo, capturar o instante crucial da passagem, um tempo suspenso. A novidade em relação à representação grega, que era uma nostalgia do belo, era esta interrupção da duração no momento da sua perda de equilíbrio.
Também a fotografia estabelece uma relação de substituição com o que já passou, suspendendo o tempo. Associa-se, assim, mais a uma comemoração do que a uma representação: fixa o tempo e celebra o efémero.

O tempo hoje tornou-se mais complicado; os cientistas separam a Óptica ondulatória da Óptica geométrica aquela em que vivemos, tempo de curtas durações, do electro-magnetismo e da gravidade. Mas a prática fotográfica mexe com as duas, porque a luz é o tempo e com a fotografia instantânea interrompe-se o fluxo – cosmogónico – de luz de longa duração.

O tempo fotográfico é um tempo que se expõe, um tempo de superfície, que é o do fotógrafo, na sua ânsia de capturar o tempo da sua vivência, (tempo vivo), que deixará a sua ferida, a sua marca, na imagem. Mas o tempo da tomada de vistas é o tempo-luz, com a frequência de onda portadora dos fotões. O fotógrafo reage com duas operações psicológicas ligadas ao corte/captura da imagem no tempo e com uma participação empática com o tempo do mundo. A explicação pode ser científica, mas o sentimento toca o sagrado, bem expresso nas palavras, comuns na disciplina, de “banho de revelação”, “placa sensível” e, nomeadamente, “revelação”.

A imagem fotográfica, - uma imagem fotográfica como esta de João Pinto de Sousa, - coloca-nos uma série de reflexões. A jovem, (que supomos ser jovem, porque apenas vemos uma fracção da realidade captada que enche o plano total da fotografia), em equilíbrio dinâmico, é mostrada sem estratégias fotográficas que sugiram o movimento. Mas no seu estaticismo de imagem parada é, na realidade, puro movimento: basta verificar o modo como a posição do pé e a relação do corpo com a figura o assegura. Não vemos, mas reconhecemos o movimento: a imagem capturou o tempo, que é, afinal, a forma da matéria em movimento.

E a língua latina, de novo: o pé calçado é o punctum que nos fere na imagem, e é o seu próprio pulsar. Punctum, (termo latino) e trauma, (termo grego) significam o mesmo, ferimento, rasgão na pele. Roland Barthes usou o acutilante do latim para traduzir a fulguração onde se inscreve a sedução de uma imagem que nos atinge e nos atrai. Pecando por uma aflitiva instabilidade funcional, o elegante pé calçado peca também por excesso: destoa da sobriedade rigorosa do conjunto de vestuário. O tacão, demasiado alto, demasiado estreito, é um desafio, o requinte da decoração é uma inconsequência, uma contradição: é um punctum.

O punctum é um detalhe, um objecto parcial, uma ferida que traz consigo uma carga emocional e surge numa dobra da percepção consciente, investindo-lhe um sentimento. Atribui-se-lhe, pois, um afecto. De resto, sabe-se bem como o olhar se estrutura no desejo, o olhar é um impulso, não apenas um receber. E quando não sabemos dar significado a detalhes enigmáticos tentamos entendê-los pelo imaginário. O punctum na imagem de João Pinto de Sousa pode representar um quiasma, que é também um termo médico e significa sempre aquele lugar interrogativo, que marcamos com uma cruz.

Também por tudo isto a fotografia é uma máquina do tempo. Na cultura tecnológica, que permite esta imagem online, o espaço é espaço de tempo. Por vezes, como nesta imagem, a dinâmica do espaço e do tempo, (e apenas porque receamos o desastre circunscrito naquele pedal em dia de festa) ultrapassa-nos mas infiltra-se. Nós somos tocados pelo tempo, o que as imagens fotográficas não deixam de nos lembrar. Por isso materializamos o tempo em relógios e fotografias.

Maria do Carmo Serén

João Pinto de Sousa
Cirurgião, professor universitário e fotógrafo amador

1 comentário:

Anónimo disse...

Tem de facto um punctum, mas que nos faca pensar? que mereca tantos parágrafos de palavras encomendadas ao mais erudito dos dicionários e procure explicacoes tao filosóficas para uma parte de um corpo que mecanicamente se relaciona com uma bicicleta??
Nao é que nao goste da foto.

 
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