02 dezembro, 2007

pensar

Atlântico visto do Cabo de Sagres, Pedro Neves Marques
(© Pedro Neves Marques)

Desde a primeira edição do prémio Bes Revelação que não se têm calado as vozes críticas a propósito do reconhecimento de trabalhos que usam o suporte ou a linguagem fotográfica dentro do vasto campo das artes visuais.

Sobre essa polémica Ricardo Nicolau, adjunto do director do Museu de Serralves, escreveu um curto ensaio onde se isolam problemáticas e se tentam identificar os campos de acção de cada artista seleccionado:

O que aconteceu à fotografia?*

‘O que aconteceu à fotografia?’ e, mais especificamente, ‘Onde está a fotografia?’, são duas perguntas recorrentemente associadas às duas primeiras edições do BES REVELAÇÃO, que apresentaram nos últimos anos, sempre na Casa de Serralves, o trabalho de jovens artistas – e não estritamente jovens fotógrafos – mostrando objectivos (esculturas e vídeos, nomeadamente) que à partida pareciam dissociar-se daquele suporte.
A presente exposição, apresentando trabalhos de Catarina Botelho, Ivo Andrade e Pedro Neves Marques vem confirmar, senão agudizar, aquelas dúvidas disciplinares, ou ontológicas, contribuindo mais uma vez para questionar o que se poderá afinal entender por ‘campo da fotografia’. Não apenas porque são de novo apresentados objectos (livros, peças escultóricas) e vídeos,mas também porque à produção fotográfica propriamente dita não correspondem autores fotógrafos, mas artistas. Explico melhor: mesmo quando se apresentam fitigrafias ded alguém, como CATARINA BOTELHO, que tem adoptado a fotografia como suporte exclusivo do seu trabalho, deve ter-se presente que este não se confronta com a história da fotografia, mas com a história das arte visuais, e que tem como horizonte de recepção o campo da arte, mais do que o da fotografia em sentido estrito – confirmam-no os projectos em que a artista se tem envolvido, os espaços e os contextos em que tem apresentado o seu trabalho, bem como a sua recepção crítica.
Optando pela fotografia instantânea, pelo “estilo sem estilo”, Catarina Botelho salvaguarda a natureza subjectiva e auto-biográfica do seu trabalho, plasmando o não procurado, o involuntário. Aponta a realidade ao mesmo tempo que nos recorda que a fotografia nunca a pode representar.
Ivo Andrade e Pedro Neves Marques, os outros dois artistas apresentados nesta exposição têm com a fotografia uma relação particular, cujas raízes se podem encontrar na arte dos anos de 1960 e 1970: utilizam, por vezes com fina ironia, a sua inata capacidade para descrever as coisas, a sua longa história de registo e de demonstração.

As imagens de IVO ANDRADE, por exemplo, jogam com o estatuto documental da fotografia, Fotografando batatas esculpidas em forma de rosto, e aoresentando-as como objecto técnico, informativos, o artista explora zonas liminares entre arte autónoma e documento útil.
PEDRO NEVES MARQUES, impõe o acto de fotografar como momento de autenticação, tirando partido da relação estrutural entre fotografia e legenda. Nos seus livros o artista aponta o limite do potencial documental da fotografia, declarando uma série de factos não verificáveis nos textos que acompanham as imagens – datas, localizações, itinerários.
É curioso como estes dois trabalhos, aparentemente afastados da fotografia em sentido estrito, de alguma forma herdeiros da arte conceptual, conseguem simultaneamente apontar para as características que podem ajudar a defini-la. Recordemo-nos que Jeff Wall argumentou num célebre texto
[1] que a orientação da arte conceptual para a fotografia representou uma curiosa procura do ideal modernista de auto-reflexidade di medium, permitindo localizar os traços que o definiriam.
Esta edição do BES REVELAÇÃO, permite uma aproximação crítica à fotografia, reconhecendo os esforços pioneiros dos artistas conceptuais dos anos de 1960 e 1970 e o compromisso dos seus “sucessores”, e instaura, pela terceira vez, a Casa de Serralves como um lugar priveligiado para examinar a relação da arte com a fotografia.

Ricardo Nicolau

*Título pedido de empréstimo a um livro que reúne uma série de conferências apresentadas no congresso Photography, Philosophy, Technology [Fotografia, Filosofia, Tecnologia], celebrado em Abril de 2002 e onde participaram nomes fundamentais da teoria da imagem, como David Green, Steve Edwards, Geoffrey Batchen, Peter Osborne, David Campany and Laura Mulvey. Este congresso foi o primeiro organizado pelo Photophorum, uma colaboração entre a Universidade de Brighton, o Kent Institute of Art and Design e o Surrey Institute of Art and Design University College. Foi criado com o principal objectivo de promover o debate crítico sobre a fotografia contemporânea, especialmente no que se relaciona com a sua função nas práticas artísticas. David Green (ed.), Qué há sido de la fotografia?, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S. L., 2007.
1 Jeff Wall, “Marks of indifference: aspects of photography in, or as, conceptual art”, in Douglas Fogle (ed.), The last picture show: artist using photography. 1960-1982, Walker Art Center, Mineapolis, 2003, pp. 32-44 [originalmente publicado in Ann Goldstein e Anne Rorimer (org./ed.), Reconsidering the object of art, 1965-1975, Museum of Contemporary Art, Los Angeles, 1995, pp. 247-267].


Sem título (Luísa a descascar feijão verde), 2007
(© Catarina Botelho)

BES REVELAÇÃO
Casa de Serralves, Porto
Até 6 de Janeiro

7 comentários:

www.pedroguimaraes.net disse...

Sou capaz de entender todas as justificações deste texto, mas a minha questão
e: será que só porque tudo o que é justificável é também relevante ?

Comungo uma certa ideia subjacente neste texto, que Ricardo Nicolau parece exprimir ao apontar o sentido da necessidade da fotografia contemporânea se afastar do "campo tradicional da fotografia", explorando territórios que são na verdade do domínio da Arte, sem qualquer complexo técnico associado. O que não concordo é com as justificações dadas para sustentar o pódio dos autores apoiados pelo prémio BES. Catarina Botelho “aponta a realidade ao mesmo tempo que nos recorda que a fotografia nunca a pode representar”. Já Ivo Andrade “fotografando batatas esculpidas em forma de rosto, e apresentando-as como objecto técnico, informativos, o artista explora zonas liminares entre arte autónoma e documento útil ”. Finalmente Pedro Neves Marques “impõe o acto de fotografar como momento de autenticação, tirando partido da relação estrutural entre fotografia e legenda ”. Porreiro. Estas explicações são tão desinteressantes que até dá para desconfiar que se calhar é mais do que isso... Um caso idêntico é o do meu gato, que exige comida dezenas de vezes por dia, muitas mais vezes do que as que alguma vez será atendido. Tal comportamento talvez seja a expressão artística da impossibilidade de ultrapassar o facto de eu só o alimentar três vezes por dia. Ele explora as relações da minha paciência auditiva com a quantidade de simulações de pontapé com que o vou ameaçando para que se cale. Ignorando deliberadamente a aprendizagem, de forma conceptual o meu gato se exprime. E daí ? Vou mas é descascar feijão verde.

Curiosa também a citação do autor Jeff Wall neste texto, relativamente à orientação da arte conceptual para a fotografia. Concordo e subscrevo tudo o que este autor disse. Olho para as suas obras e sem explicações de entendidos percebo o que ele quis dizer. Na sua obra, e de outros contemporâneos, sinto de forma evidente a análise crítica do meio no seu tempo, por olhos que ultrapassaram o próprio tempo e por conseguiram criar um novo código visual, assente na representação hiperbolizada do comum ( na cultura ocidental ! ), recorrendo aos meios da técnica fotográfica. Neste caso, o Ricardo Nicolau que me perdoe, mas parece-me os autores que defende só muito ao de leve conseguem roçar este campo de intersecção entre a arte, a vida e... a técnica fotográfica. Apesar de tudo o prémio era de fotografia, não era ? É que se não, o conhecido ciber-repositório de imagens Flickr está pelas costuras de potências vencedores do prémios BES. Técnica sem técnica, confronto das artes visuais, joguinhos de imagens e palavras, lá há de tudo aos pontapés.

CMF disse...

O comentário anterior é excelente. Eu não conseguiria exprimir de melhor forma aquilo que sinto ao ler o texto de Ricardo Nicolau.

PdR disse...

Tal como os comentadores anteriores penso que o que esta' a acontecer 'a fotografia e' algo bastante perigoso.
Em primeiro lugar, porque parece que so' artistas ou fotografos profissionais sabem explorar a capacidade de se poderem captar imagens mecanicamente.
Susan Sontag acha exactamente o contrario, assim como Walter Benjamin.
A Fotografia e' talvez o meio de producao visual mais democratico que existe - esta' acessivel a todos os que o queiram explorar.

Relativamente aos chavoes sobre a Arte Conceptual, penso que e' redutor apoiar-se uma escolha apenas num unico texto de um artista-fotografo/autor que aprecio bastante, por sinal. Ainda assim, parte-se de uma visao muito orientada e provavelmente escrita com um determinado objectivo em mente, para se fazerem as escolhas.
A Fotografia e' indubitavelmente uma forma de documento.
E a Arte Conceptual carrega em si muitas obras efemeras. Os trabalhos Conceptuais justamente dos anos entre 1960 a 1970 sao maioritariamente construidos em materiais de pouca duracao ou sao somente performativos e que dependem muitas vezes do lugar onde foram realizados. Qualquer alteracao sobre o Espaco pode destruir o objecto de arte fisico e dai que muitos artistas tivessem procurado outros meios de o documentar ou mesmo tornar mais acessivel a um publico mais alargado, atraves de mediums que tivessem uma maior capacidade de serem conservados e transportados (que tenham uma maior durabilidade que os objectos-obra criados).

A Fotografia e' um registo e e' um documento.
Parece-me que os criterios que levaram a' seleccao talvez sim, se tenham desviado de uma reflexao sobre o que e' a fotografia.
Realmente, se nao houverem certezas sobre que tipo de fotografia se deve fazer, esta questao e'e sera' bastante recorrente.

Eu julgo que os criterios de seleccao nao foram mais que um pouco ver o que se anda a fazer "la' fora", em termos de novidades.
E realmente ha' hoje uma separacao, ou pelo menos tenta-se, entre a fotografia documental - que regista os acontecimentos tal como aconteceram e a fotografia cinematica - em que os resultados sao normalmente criados atraves de encenacao.
E ai sim, faz sentido falar de Jeff Wall, que e' eximio neste ultimo tipo de fotografia.
Mas este tipo de Fotografia e' um dos muito outros que poderao ser feitos.
Vejo o trabalho da Catarina Botelho inserido neste contexto - quase como uma aprendiza de Jeff Wall.
Mas este aspecto traz outras consequencias e nao desfazendo do trabalho desta artista, o qual pude ver em parte na Plataforma Revolver e que ate' gostei bastante, que sao o de qualquer coisa parecer uma Fotografia capaz de ser nomeada para o unico premio existente no Pais que podera' marcar a diferenca na Arte Fotografica nacional.
Porque razao teremos nos de andar atras do que outros ja' comecaram a fazer 'a cerca de 30 anos?...
Penso que sera' tempo de se ser mais assertivo e aprender com os erros dos outros.
Se ha' uma base de conhecimento visual ja' criada, ha' que aprender com ela e fazer melhor.
Porque como o primeiro comentador referiu, existe uma base de dados mundial com milhoes de potenciais vencedores de premios. Muitos deles jovens de 15 anos... mas que tem um completo dominio sobre a Imagem.
E' normal que hoje em dia se possa ate' perguntar o que e' a Fotografia.
Nos vivemos rodeados de imagem. Temos hoje em dia a sociedade mais pictorica que alguma vez a especie Humana pode ter vivido, mas isso nao significa que se justifiquem escolhas por essa razao.
Penso que e' tempo de se dar primazia a imagens mais inteligentes ou que na sua simplicidade tenham um valor maior que aquele do registo do momento.
Imagens que nao carreguem tanto en si o poder de sugestao (porque isso e' feito diariamente pela Imagem Publicitaria), mas sim que criem a duvida e o espaco suficiente para que cada espectador possa tirar as suas conclusoes. As imagens tem de passar de episodios, para pistas para uma historia mental na cabeca de cada espectador.
E isto sim e' uma questao. Nao e' uma colagem de 'a 30 anos atras...
Se for entrar pela Arte Conceptual vejo uma serie de outras coisas que nem sequer foram referenciadas... por exemplo as obras de Robert Smithson - Spiral Jetty, que sendo Land Art e estando sujeita 'as condicoes naturais se vai degradando. Claro que a fotografia faz todo o sentido ser usada para a documentar. Ira' durar certamente mais que a obra conceptual que a originou... a maioria da obra que chegou aos nossos dias de Gordon Matta Clark... sao fotografias (a Fundacao de Serralves ate' e' dona de alguns destes registos fotograficos deste artista conceptual)... mas isto sao so' exemplos.
Se a imagem e' em si uma copia do real, a questao e' pensar este aspecto e nao continuar a colar conceitos meio vazios a imagens.

Anónimo disse...
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Unknown disse...
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Anónimo disse...
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Anónimo disse...
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