12 fevereiro, 2007

*À conversa com...

Floresta afogada, Lago Argyle, formado pela barragem do Rio Ord, em Kununurra, Kimberley, Austrália Ocidental, 2003
(© Richard Woldendorp, cortesia do artista)


...Jorge Calado
É a exposição de fotografia do ano em Portugal. INGenuidadesFotografia e Engenharia 1846-2006 reúne 350 imagens vindas de museus, galerias e colecções privadas dos quatro cantos do mundo. Enquanto dava as últimas indicações na Galeria de Exposições Temporárias da Fundação Calouste Gulbenkian, o curador Jorge Calado, professor catedrático de Química do Instituto Superior Técnico, crítico de fotografia e ópera, falou da génese desta mega-exposição, das relações entre fotografia científica e arte e do elemento que lhe deu mais trabalho representar.

Que INGenuidades nos quer dar a ver com esta exposição?
As mensagens são várias. Isto é uma homenagem à capacidade criadora da Humanidade ao longo dos séculos, desde sempre. Por outro lado, quero também transmitir às pessoas que quando se cria alguma coisa está a destruir-se também. Embora exista esta imagem de que a terra é a nossa mãe, a terra é também a nossa filha. Estávamos habituados a chamar mãe à natureza, mas quem trata da natureza somos nós. Ela é da nossa responsabilidade. Temos de a conservar. Há aqui também uma mensagem ecológica e que se liga muito bem com a história que tento mostrar: a obra de arte de engenharia, nasce, cresce vive e morre. Há um ciclo e depois volta-se ao início, é a reciclagem.

Logo depois da apresentação genérica das forças da natureza aparecem imagens de obras grandiosas que envolvem a arte e o engenho do Homem. Porquê este contraponto?
As obras da engenharia são uma resposta às forças da natureza. Quando as forças da natureza são demasiado poderosas, nós temos de nos defender. A engenharia pode ser parte da solução. Por outro lado, a engenharia tira partido destas forças. Nesta secção [Grandes Maravilhas] quero dar também dois lados: o lado em que somos derrotados e o lado em que fomos capazes de mover rochedos para fazer obras grandiosas, como as pirâmides do Egipto ou as construções circulares de Stonehenge.

Não deve ter sido tarefa fácil organizar uma exposição com esta dimensão. Quanto tempo demorou a seleccionar as fotografias?
Já ando a pensar nisto há algum tempo. A ideia original nem foi minha. Foi dada por uma amiga da Austrália depois de ver a exposição À Prova de Água, no CCB [em 1998]. Conversámos algumas vezes sobre isto. Primeiro surgiu a ideia de fazer qualquer coisa relacionada com fotografia e ciência e só depois avancei para as engenharias.

Qual foi a maior dificuldade?
Não tive grandes dificuldades, para ser franco. Em termos de empréstimos até tive muita sorte, porque é muito raro numa exposição com esta dimensão – são 350 fotografias – pedir empréstimos e conseguir quase tudo, à excepção de uma imagem que até nem era fundamental.

Há aqui uma grande trabalho de memória...
Interesso-me muito por fotografia. Conheço bem a história e conheço bem a fotografia contemporânea. Vejo muita coisa. Isto está armazenado de alguma maneira dentro da minha cabeça. O difícil é arranjar um fio condutor, uma ideia para a exposição. Não andava a pensar nisto todos os dias, mas de repente pensei: mas porque é que não pego nos quatro elementos que é uma coisa que toda a gente percebe. É simples, é básico. Já anda na consciência colectiva há milhares de anos.

Que elemento foi mais difícil de tratar?
Para dar uma ideia forte do Ar, num certo sentido, foi difícil. Mas em termos de engenharia não. Há a engenharia aeronáutica, as pontes e o espaço.

Quis ser exaustivo na representação das diferentes áreas da engenharia?
Não. Há coisas que faltam aqui. Aquilo que falta pode ser sempre imaginado por quem vê. É um exercício.

Há na exposição alguma imagem que tenha sido comprada nos últimos leilões de fotografia que houve recentemente em Lisboa?
Sim, há uma fotografia. É de uma fábrica da Ford, em Inglaterra. É uma fotografia muito boa e de que gosto muito.

A partir de meados do século XIX o suporte fotográfico impôs uma nova maneira de fazer ciência e transmitir conhecimento científico. Esta exposição é também uma homenagem a essa nova maneira colectiva de ver e participar nas descobertas científicas e nos avanços das engenharias?
Sem dúvida. Isto é o resultado do progresso científico e técnico da altura. Dou-lhe dois exemplos que são ligeiramente diferentes, mas estão relacionados com isso. Há aqui muitas fotografias australianas e americanas porque o aconteceu foi que estes dois continentes foram desbravados e explorados durante o século XIX, numa altura em que já existia a fotografia. Portanto, todo o levantamente geológico, a construção do caminho de ferro, a construção do telégrafo, a exploração e a prospecção mineira foram sempre acompanhadas pela máquina fotográfica. As próprias dificuldades que a engenharia tinha impuseram melhoramentos na técnica fotográfica. As duas coisas estão ligadas.
Depois, há muitos exemplos históricos. Há aqui uma fotografia que foi das primeiras a ser transmitida via rádio.
A técnica quando se desenvolve permite ver outras coisas que não eram visíveis anteriormente e isso está aqui reflectido. A necessidade de ver cada vez mais e mais longe, que é uma ânsia natural do homem e da mulher impõe desenvolvimentos técnicos na fotografia, assim como no espaço. Temos aqui fotografias de galáxias que estão a milhões de anos-luz.

Acha que a perspectiva dos elementos – Água, Terra, Fogo e Ar – pelo suporte fotográfico mudou a forma do homem olhar para si e para a sua condição?
O Homem teve sempre tendência para pôr tudo à sua medida. Costuma-se dizer que Deus fez o Homem à sua imagem e semelhança. Eu acho que é o contrário – o Homem é que imagina Deus à sua imagem e semelhança. O Homem imagina tudo com as suas dimensões. Quando é confrontado com os elementos da natureza tem reacções de espanto e de medo que são as características do sublime. O sublime é, de certo modo, uma experiência nova que está para além do pitoresco e do belo que qualquer pessoa pode ter em circunstâncias normais. Ora, essa apreensão dos elementos em toda a sua energia, em toda a sua dimensão geram experiências sublimes. Mas é uma experiência subjectiva. Nem todos têm as mesmas reacções perante coisas que são sublimes.

É possível determinar o momento a partir do qual a imagem científica ganha valor estético? Que critérios são usados?
A ciência é toda avaliada esteticamente. Acho que é impossível fazer ciência sem critérios estéticos. Quando fazemos uma descoberta ou chegamos ao fim de uma experiência temos sempre um sentimento de grande alegria e de iluminação. Esses sentimentos são muito regulados pela estética, pelo sentido de proporção e de que as coisas batem certo. A simplicidade estética também é uma característica da ciência. A fotografia científica partilha isto tudo com a ciência.

Mas existe algum critério que possa ser usado para dizer “esta fotografia científica é uma obra de arte”?
Os critérios que uso para a fotografia são muito simples. Pergunto: “Isto sugere-me algo de novo? Isto interroga-me ou interroga a minha relação com o mundo? Isto perturba-me? Isto emociona-me?”. Se [a fotografia] me deixa completamente indiferente não é, para mim, uma obra de arte. Mas se me obriga a fazer perguntas, inclusive a pergunta “Isto é uma obra de arte?”, é um sinal.

A condição primeira da fotografia é técnica porque nos dá uma física e uma química das experiências. Será essa natureza fatal que dificulta o seu percurso rumo ao que é considerado arte?
A fotografia quando nasce é uma coisa curiosa, porque é o resultado de uma descoberta científica, feita por cientistas, mas também nasce para responder a algumas questões relacionadas com a arte. O Fox Talbot [Henry Fox Talbot, inventor do processo de negativo-positivo], por exemplo, parece que gostava de desenhar, mas não tinha jeito nenhum para o desenho. Quando ia de férias para a Itália e via paisagens lindíssimas começava a desenhá-las, mas olhava para aquilo e dizia “que coisa horrível, isto é mais bonito do que aquilo que eu estou aqui a fazer”. Não tinha jeito para pintar, nem para desenhar. E daí pensou que talvez fosse possível pôr a natureza a desenhar-se a si própria. O primeiro livro dele ilustrado com fotografias chamou-se “O Lápis da Natureza”.
Quando aparece, a fotografia é uma dádiva dos cientistas às pessoas que também se interessavam por arte.

A investigadora francesa Monique Sicard escreve num livro recentemente publicado em Portugal que “nada é menos científico do que uma imagem”. Concorda com esta afirmação?
Eu julgo que ela não sabe o que é a ciência. A curiosidade é essencialmente científica. Queremos perceber as coisas. Se uma imagem nos questiona, se começa um discurso, está a gerar em nós uma atitude científica, mesmo que seja a sua rejeição.

1 comentário:

JOAQUIM CASTILHO disse...

Excelente a definição de "obra de arte" que, quanto a mim , deveria ser válida para qualquer outra manifestação da criatividade humana e evitaria muita "brincadeira curiosa" que os especialistas e negociantes em arte nos tentam impingir como sendo ARTE...

 
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