15 julho, 2008

/uma fotografia, um nome\

In The Idea of South
(© Bruno Santos)

É um patamar qualquer, de um prédio qualquer com rés-do-chão e três andares de apartamentos. À esquerda, afirma-se um interruptor com restos de tinta. Mas o que dá o sentido periférico ao fragmento fotográfico são as caixas de correio erodidas, deixando ver a publicidade personalizada: uma lanterna de atenção, com a sua numeração de pintura caseira e irregular.

É isto. Uma parte decisiva da cidade não é representável pela imagem e, por isso mesmo, mantém-se imperceptível. Não vemos o feixe de complexos múltiplos, fluidos e metafóricos que definem uma cidade, que resistem a uma interpretação total no campo do visível. Porque, antes do mais, da cidade vemos apenas a sua pele, a superfície das coisas; na fotografia e na vida as formas que se desenham e contornamos com o olhar são apenas um limite, uma frágil exterioridade, a orla de qualquer coisa que se recorta no caos do que é. A cidade, porque se transmuta, se altera, porque o tempo, os homens e os acontecimentos fluem num vaivém do quotidiano, é essa agitação opaca de que falava o filósofo De Certeau.

Porque o interior destes burgos que perderam a muralha não pode ser apreendido na sua intimidade, no que ele tem de realidade. Só há intimidade nos dispositivos simbólicos, nos rituais das tribos urbanas, nas mitologias que explicam o quotidiano; a cidade é, decisivamente, esse conjunto de universos regrados ou anómicos dos seus habitantes. E essa complexidade de regras, gestos e saberes, as práticas e os olhares, entretece e caracteriza os significados das coisas e dos aconteceres e todas essas práticas não se registam nas imagens, são o seu lado opaco.

E, por tudo isso, se diz que a cidade é uma máquina de perda de sentido. Por tudo isso não podemos dar significados à amálgama indecisa e mutante da sua multiplicação semiótica.

Frente ao paradoxo do conhecer só ser possível pela união do visível e do invisível, o fotógrafo empresta sentido, usa os signos ou as metáforas. Tem de identificar e isolar os signos mais ricos que lhe são mais expressivos no seu catálogo de referências e transforma essa fragmentação sem sentido num quadro homogéneo. Então Bruno Santos dá-nos o prédio de cimento armado de que não vemos mais do que um apontamento da estrutura de base, usando o apelativo sortilégio das caixas do correio. As famílias alinham-se na nossa evocação vazia, o desleixo e a publicidade sugerem-nos, (impõem-nos?) a ideia que temos de lugar periférico e sentimos que há uma caixa que nos olha na sua ausência de significado imediato, o R/C B: podemos imaginar conflitos de vizinhança, destemperanças juvenis ou de bando, rivalidades muitas. E, porque Bruno Santos nos tem habituado às suas pesquisas de lugares periféricos do Sul europeu, aceitamos o sistema ordenador que é a noção de periferia . É como habitação periférica, desertificada nas suas horas diurnas, que a imagem nos olha.

E, no entanto, também sabemos que há em cada imagem uma zona cega: cada olhar leva consigo outras imagens, outras cidades, (Van der Elsken a fotografar Paris como se fora Amesterdão, Klein ou Frank fazendo europeias as suas cidades americanas, Plossu fotografando uma cidade que já não existe…) Na sua solidão de flâneur, o fotógrafo constitui em cada imagem um contexto que o ultrapassa. Não damos sentido ao modernismo das estruturas, que não joga com o empedrado do pavimento, é o invisível sugerido pelas caixas do correio que constitui o enigma da cidade: os pontos cegos que a cidade produz e Bruno Santos soube recriar.

Maria do Carmo Serén

Bruno Santos é fotojornalista em Lisboa; as suas séries de fotografia de autor abordam habitualmente a identidade periférica.

1 comentário:

Anónimo disse...

Creio que o que mais me impressiona nesta imagem é o enquadramento, o crop. É esse traço certeiro que lhe dá convicção enquanto imagem. Mais um pouco de caixas e menos de parede, de proximidade ou de afastamento e tudo enfraquecia.

 
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