08 abril, 2008

/uma fotografia, um nome\

André Príncipe, Smell of tiger

Imaginemos que a mulher não existe. É o título, bem lacaniano, da análise de ética e sublimação, da investigadora americana Joan Copjec. Imaginemos, mesmo, que a mulher, esse ícone ataviado com o desejo masculino, não existe. E confrontemos então esta imagem directa de André Príncipe, uma rapariga onde o excesso desestruturante da mensagem, simplesmente destrói dois atributos clássicos da mulher-objecto, a maquilhagem reparadora e o toucado, velho avatar de sedução. Uma jovem que é, antes de tudo, um olhar sobre nós.

É difícil olhar o desencanto, mais ainda quando nos devolve o desencanto das nossas convicções.

André Príncipe é um puro fotógrafo vagabundo, persegue o mundo todo enquanto se persegue a si mesmo. O que nos mostra é, necessariamente, e quase invariavelmente, um mundo jovem em conflito radical de gerações. Ao usar a fotografia faz ficção com a ficção de ser mas, mercê desta abertura que a fotografia multiplicou, varre o olhar omnisciente do divino que ainda nos afastava, como criaturas dependentes, dos jardins do Paraíso. O mundo da fotografia directa é definitivamente profano e aberto. E, cada vez mais, guarda uma ausência ignorada. Nesse mundo, o homem é visto por todos, no seu contexto, nas suas acções, nas interpretações que o fotógrafo nos propõe.

E talvez por isso mesmo a fotografia vive o seu momento de crise, que o conceptualismo e o pós-modernismo, actuando formalmente e sem auto-crítica, não resolveram. Há quem diga que a imagem da fotografia directa, química ou digital, precisa de actualizar os conteúdos, mostrar o que se passa para quem o vive na superfície das coisas. Porque essa forma de pensar intuitivamente com o choque da imagem, traz consigo o testemunho do tempo que vivemos e é garantia do autêntico. Ficcionado ou não, sentimos com ideias, imagens e fantasias.

A imagem fotográfica, nos seus diversos suportes, tornou-se a paisagem que melhor conhecemos. E, com isso, perdemos os valores em que assentava a nossa cultura de herança grega. Porque mergulhamos, no multiculturalismo da globalização, a diferença tornou-se irrelevante, perdeu-se a identidade e, desse modo, as regras da lógica clássica. Sem o princípio da não-contradição e do terceiro excluído, que a nossa gramática latina e os programas de computadores continuam a usar, a irrealidade e a alteridade, (ser uma e outra coisa, ao mesmo tempo) do mito, organizam o nosso conhecimento e a nossa fruição. É, necessariamente, o fim dos paradoxos e a dificuldade da diferença. Seja no virtual, seja na constatação diária de que 'o que é' nem sempre 'é'. Como uma fotografia nos explica, como o mundo fantasmático de sucedâneos multimédia com que fazemos a vida, nos assegura de segundo a segundo.

Na fotografia de André Príncipe o mundo transforma-se num imenso não-lugar, onde enquadramos homens e coisas em permanentes periferias de uma ideia de cidade, de uma ideia de campo, de praia, de civilizações que aprendemos codificadas em outro tempo e outro espaço. E é nesses lugares inóspitos e quase malditos, por entre luzes dos novos néones da publicidade e da contrição cívica, onde vicejam equipamentos de estruturação do trânsito, que encontramos a poesia e o esplendor desta cultura nova. Aqui e ali há o reencontro com a inevitável solidão do rebanho de sujeitos desligados, o transe maior de uma incapacidade de reagir. No seu mundo de turbulência de luzes e movimento, de agitação não estratificada, a diferença não é provocação nem é aviso. Está ali, simplesmente, desafia um olhar, uma classificação. Esquece-se ou não se esquece. Depois de a ver, de a sentir, afastamo-nos deste olhar cansado da rapariga do autocarro, que nem é interrogativo nem sedutor. Mas é um olhar que diz que é, 'tropeçamos nele como um excedente do mundo'. Disse-o Sartre.

E como o livro de Joan Copjec me foi oferecido incompleto, nunca saberei se o olhar do outro implica ética ou sublimação. Mas sei, sem o ler, que revolve o sentir.

Maria do Carmo Serén

André Príncipe (1976)
Tem formação em fotografia (Curso de Fotografia na Faxx Akademie, Holanda) e em cinema, (curso na área de montagem na Escola Superior de Teatro e Cinema, Lisboa, 1998-2001; Curso de Realização Avançada da FCG/London Film School, 2005). Mostrou o seu trabalho de fotografia nos Encontros de Imagem de Braga, CPF, e Silo. É fundador da editora de livros de fotografia, Pierre von Kleist Editions.

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