04 junho, 2014

*À conversa com...



António Júlio Duarte, Japan Drug, 1997
© António Júlio Duarte
...António Júlio Duarte

Dizem que houve casa cheia na livraria STET no lançamento de Japan Drug, o novo livro de António Júlio Duarte, mais um com a chancela da Pierre von Kleist. Foi um livro de gestação demorada, ritmo lento e caminhos em ziguezague, tudo coisas ao gosto do autor. Relato de dois dedos de conversa com um inimigo à mistura – o relógio.

(…)
Este livro teve um processo de edição demorado, com paragens pelo meio. Passou por rever todo o material que tinha…

…e foi desta viagem ao Japão que nasceu também o Deviation of the Sun
Sim, os trabalhos do Japão não estavam resolvidos. Faltava fazer qualquer coisa com eles, só que ainda não tinha encontrado uma forma definitiva. Acho que agora estão fechados.

Estes livros obrigaram-te a rever o teu percurso?
Foi interessante. Todo o processo foi interessante, era uma coisa que nunca tinha feito – rever um corpo de trabalho que tinha mais de 15 anos. Voltar atrás, ver o que fiz o que não fiz, perceber de onde é que vieram muitas das coisas que estou a fazer agora. E mais curioso do que isso foi encontrar imagens que, na altura, não tinha compreendido. Fazem todo o sentido agora e apontam para coisas que fiz depois. Na altura não soube olhar para elas ou por qualquer circunstância não reparei nelas. Ou então não as sabia mesmo ver. Ainda estou a pensar nisto. Foi muito curioso. Havia imagens de que já não tinha recordação - foi como fotografar outra vez.

Tenho a sensação de que os fotógrafos gostam pouco de regressar a trabalhos antigos, muitas vezes porque sentem vergonha deles…
É verdade, mas às vezes também é porque já se afastaram muito deles. Mas acho que 15 anos é pouco. Temos uma relação estranha com o tempo agora. É tudo demasiado rápido. Quinze anos não é muito. Há trabalhos que precisam desse tempo. Outros são mais imediatos. Isto faz-me pensar também que os trabalhos nunca estão realmente fechados. Dá sempre para voltar atrás. Pelo menos foi o que senti em relação a este corpo de trabalho. Era um trabalho especial. Foi muito importante para mim. O facto de estar sozinho, de ter trabalhado intensamente durante três meses.

Mas esta não foi a tua primeira experiência no oriente...
Não, não. Mas foi a mais intensa. Estar sozinho, tanto tempo. E de ter esse luxo de estar ali só para fotografar, sem pensar noutras coisas.

Partiste para este trabalho de revisitação com algum preconceito?
Não. Isto começou por um convite do Centro Cultural Vila Flor de Guimarães para fazer uma exposição. Eles queriam algo retrospectivo. De momentos que eu achasse importantes. Pensei então que faria mais sentido pegar num único corpo de trabalho. Neste exercício era possível fazer uma coisa que queria ter feito há já algum tempo que era expor apenas provas de contacto, uma coisa que os fotógrafos nunca mostram ou que têm muita relutância em mostrar. Este trabalho prestava-se a isso porque tem um volume grande – são seiscentas provas de trabalho. Sempre as quis ver numa sala. Mas por variadas circunstâncias este livro não saiu na mesma altura que a exposição de parte dessas provas. Fazia todo o sentido que esta escolha fosse confrontada com as provas de contacto. Era isso que estava previsto. Se isso tivesse acontecido era possível ver a maneira como penso, como edito, como escolho a partir de qualquer coisa. Era jogo aberto estaria tudo às claras. Teria feito todo sentido…

Ao longo do livro damo-nos conta de um jogo entre artificial e real ou entre aquilo que parece artificial e aquilo que não pode fugir ao real. Fizeram uma sequenciação a pensar nesta alternância?
Foi uma coisa que se impôs. Mas não de uma forma estudada, nem demasiado racional. A sequenciação foi feita de uma forma muito fluída, sem perder muito tempo a pensar por que é que uma imagem fazia sentido ao lado da outra. As imagens foram encontrando o seu lugar. Não havia uma ideia preconcebida. Foi aparecendo uma ondulação, um ritmo…
Mas houve algumas coincidências curiosas durante o trabalho de edição, que, como já disse, foi demorado. Li livros do Lafcadio Hearn, um jornalista que foi para o Japão em meados do século XIX e ficou por lá. Os livros dele têm uma ideia fundamental: não se pode perceber o Japão, tudo é ao contrário – os bichos parecem ferramentas, as ferramentas pode ser outra coisa qualquer. Não se consegue perceber nada no Japão. Depois dele várias pessoas reafirmaram esta ideia de que como ocidentais não podemos conhecer o Japão. Há passagens onde ele diz que os objectos se confundem com as coisas vivas e as coisas vivas se confundem com objectos.
Mas houve outra coisa que descobri agora e que tem a ver com o trabalho de casa que se calhar deveria ter feiro na altura: 1997 foi o início de uma grande crise financeira que arrastou toda a ásia. Este trabalho ganhou ainda mais sentido hoje. Daí o texto referir que a inquietação pessoal não passou. E a inquietação do mundo também não.

Conseguiste perceber alguma coisa do Japão?
Não! Acho que qualquer pessoa de bom senso não pode afirmar outra coisa. Correspondeu a todos os clichés que levava e surpreendeu-me sempre também. O Chris Marker também dizia que não se deve tentar perceber o Japão.

Hesitaste muito na sequenciação? Ou mudas pouco?
Gosto de ter sempre outras pessoas sequenciação. Porque trazem um olhar desapegado em relação às imagens. As coisas levam o seu tempo e não se podem forçar. Há dias em que se consegue ter um ritmo de edição muito bom e outros em que se consegue colocar só uma imagem.

Ficaste surpreendido com o que encontraste?
Fiquei. Na altura talvez me faltasse qualquer coisa para o perceber…

Noto que há outra constante ao longo das imagens: as pessoas de costas. Gostavas de passar despercebido?
Era um fotógrafo um bocado mais discreto na altura. E mais tímido também [risos]. Mas também tem a ver com um certo respeito, com um código de boa educação para com as pessoas.

Sentias que a fotografia era uma agressão?
Sim. Era uma forma de não impor a minha presença. Queria passar pelas coisas sem as perturbar muito. Um respeito por um território, pelas pessoas. No Japão sente-se muito isso. Quis manter alguma distância. Procurei não perturbar a harmonia das coisas. É muito intuitivo, deixamo-nos ir nessa atitude.

Lembravas-te da maior parte das imagens?
Lembrava-me de todas as imagens. Não consegui compreender muitas delas na altura. Fazer este trabalho foi um bocado como voltar ao Japão. E agora gostava de voltar fisicamente. Deu-me vontade de voltar. De perceber melhor. Este trabalho abriu-me imensas opções. Fechei qualquer coisa e tenho um leque de opções vasto à minha frente. Reconciliei-me um bocado com o preto-e-branco também. Quem sabe…

Mas este trabalho era uma pedra no sapato?
Não era, mas sentia que não estava arrumado. Não tinha sido visto com olhos de ver. Estava instável.

António Júlio Duarte, Japan Drug, 1997
© António Júlio Duarte

Neste percurso não há grandes referências geográficas… não há uma ideia de centro…
Isso tem a ver com a organização das cidades japonesas. Foi com elas que percebi o que é que os fotógrafos japoneses queriam dizer quando falavam nas suas deambulações pela cidade. As cidades não têm um centro, não tem essa estrutura. Tóquio não obedece à nossa lógica de organização de cidades. A numeração dos prédios está organizada por ordem de construção. Tudo isto faz com que seja preciso adoptar uma maneira de andar na rua completamente diferente do que é andar aqui. Acordava de manhã e pensava: quero ir a este sítio, mas ao mesmo tempo pensava que poderia nunca lá chegar naquele dia. Tinha de me deixar levar pelo que podia acontecer, é a verdadeira deambulação pela cidade. No ocidente lidamos muito mal com isto, com esta falta de referências. Temos medo nos perder. No Japão, é preciso não ter medo da desorientação, caso contrário falha-se completamente a experiência da cidade. Claro que agora é diferente, na altura não havia gps, iphones. Hoje, a experiência do espaço é diferente - ninguém se perde. Só nos perdemos se quisermos. Passou a ser uma opção.

Aceitavas essa ideia de desorientação…
Aceitava. Saia de casa e deixava-me ir. Deixava que uma coisa me levasse à outra. E acho que o livro reflecte isso. De uma coisa passa-se para outra sem uma noção de centro. Quisemos criar a sensação de andar à volta das coisas. Mas é um circular inconclusivo, a última imagem mostra pessoas a atravessar em ambos os sentidos uma linha de comboio. A continuarem a sua vida…

Foram meses em que fotografaste intensamente…
Sim, fotografava todos os dias, de manhã à noite. Foi um período de grande aprendizagem. Foi importante por isso e também porque fiquei a conhecer muito melhor o trabalho de fotógrafos japoneses. Antes de ir para lá praticamente só conhecia o [Shomei] Tomatsu e o [Nobuyoshi] Araki (quem não conhece o Araki…). O primeiro livro do Daido Moryama que vi foi em Tóquio. Se o tivesse visto fora de Tóquio (curiosamente era um livro feito em Nova Iorque) acho que não o teria percebido. Não o teria aceitado da mesma forma. Mas pensei: “Este gajo está certo!” Aquilo que ele dizia sobre a deambulação pelas cidades faz todo o sentido.

Como vês o boom da fotografia japonesa hoje?
Fico contente. Porque acho que têm finalmente o visibilidade que merecem. Naquela altura talvez só o Araki fosse conhecido mundialmente por razões que não são puramente fotográficas [risos]. Havia o trabalho do Tomatsu, fotógrafo de que gostava muito e que também percebi melhor quando estive lá.
Mas uma das coisas que mais me tocou lá foi uma frase do Penalva. Quando esteve em Hiroshima, onde tinha feito uma instalação, notou que se escavássemos quinze centímetros no solo tocaríamos na terra que esteve em contacto com a bomba. Essa ideia era muito forte e era muito presente. Mas não quis que este livro fosse sobre essa nuvem.

Este livro é sobre...
Não sei sequer se é um livro sobre o Japão. É um livro feito com imagens no Japão por mim.

Vemos que há muitos animais nas imagens escolhidas para o livro…
Há muito a cultura da representação. Havia pequenos zoológicos pelas cidades. Muita selva. Não sei se fui eu que os procurei ou se foram eles que me encontraram.

A arquitectura foi outra coisa que surpreendeu?
A arquitectura tocou-me bastante. Aliás, essa era uma parte do trabalho que não estava visível. No pouco que tinha mostrado [no Centro Português de Fotografia, em 1999] havia mais as pessoas e rostos. Essa parte que tinha a ver com a organização do espaço tinha ficado um pouco de lado.

Este livro foi uma boa experiência? Foi libertador?
Sim, foi sobretudo libertador. Abriu outras possibilidades. Os últimos três livros foram feitos de uma maneira um bocado caótica. Se calhar o White Noise [Pierre von Kleist, 2012] seria melhor percebido depois deste livro. Por outro lado, também gosto que ele tenha saído depois. Quem quiser pode relacioná-los. É bom que as coisas não sejam lineares, que tenham os seus ziguezagues.
Pode haver quem diga que isto é trabalho feito há 17 anos. Mas este exercício de revisitação para mim é um princípio, uma espécie de resistência à velocidade a que hoje se fazem as coisas.

É como se estivesses a dizer “por que é que se tem de mostrar uma coisa feita ontem?”
As pessoas agora mostram uma coisa feita há 5 minutos. Que fizeram há um minuto. Eu não lido muito bem com isso. Acho que as imagens precisam de tempo, precisam de assentar. Como o vinho. O fotógrafo americano Duane Michaels dizia isso. Lembro-me de ele ter dito isso cá numa conferência…

...na altura da exposição da Gulbenkian [Duane Michaels - há palavras que têm de ser ditas (1990)]?
Talvez, ou então foi em Coimbra. Vi mais do que uma exposição dele em Portugal. Foram belas exposições e boas conferências. E numa dessas conversas ele dizia algo semelhante, que era preciso deixar descansar as fotografias, deixá-las repousar. Aconselhou ainda a não ter pressa de mostrar. E disse que tudo levava o seu tempo. Olhar para um trabalho que fiz há mais de 15 anos deu-me esse gozo também, um gozo de e resistência. Porque não trabalhar sobre uma coisa feita há 15 anos? Para mim, isto não é arqueologia. Um filho com quinze ainda está na idade do armário.

E a imagem da capa? Que loja era aquela?
Era uma loja que vendia afrodisíacos. Na altura nem percebi bem o que vendia. É uma espécie de farmácia, algo que tem a ver com a medicina tradicional chinesa e japonesa. Vende afrodisíacos e remédios com tudo o que é ingredientes proibidos e de espécies em extinção. O que me interessou nesta imagem foi sobretudo a luz, o nome da loja, o ambiente que a rodeia…


António Júlio Duarte, Japan Drug, 1997
© António Júlio Duarte

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